quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Sinastria

Há três nomes que me creem a mulher do seu destino:
o nome escrito na carta, nos astros,
o encontro só ainda sem data.
Há três nomes que me conjugam sempre futura
e, ainda assim, exata;
Como se mais que Norte eu fosse mapa.
Não sabem que meu desatino é, parada, despertencer ao chão,
desobedecer à verdade da rota por mim traçada.
Enquanto esperam em qual esquina ou rua me encontrarão,
Eu construo cidades.

Mariana Imbelloni
05 de dezembro de 2015

Baile

Gostar é novidade velha
para quem se esmera em se perder.
Enquanto te desencontro espero
o espaço de não esquecer.

É como se dançar parado
em cada canto do mesmo salão,
cuidando para não ser ao lado,
nem se perder na multidão.

Avanço pelo beijo dado
até o ponto de uma obsessão.
E saio do seu abraço um minuto antes
do segundo exato em que acho
que você vai soltar a minha mão.


Mariana Imbelloni Braga
Dezembro de 2015

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Tecidos diários

para Leila, João e Thereza


Para a frágil tecitura do dia 
escolho o bordado tanto pela cor
quanto pela candura. 

É que ser flor, nessa ruidosa apatia,
é, sobretudo,
uma forma de luta. 

Roubo da renda a força tesa
de não se render ao ferro que assusta,
enquanto o cetim me ensina a leveza 
de moldar-se e ainda seguir em disputa. 
O caimento do brim, em sua maciez consistente
ajuda a ser firme e não perder a ternura, 
mas é sem a chita que eu não saberia 
o movimento amplo das flores em rebeldia. 

Trajar-me em cotidiana poesia 
é meu escudo-espada contra a rotina-espartilho, 
infeliz e armada. 
Por isso quando à noite me dispo
dos tecidos e das rimas em camada
deixo em molho de sonhos o vestido 
para o luar quarar minha onírica empreitada.

Rio, 02 de novembro de 2015

 

domingo, 18 de outubro de 2015

Primeirúltima página

Fim do conto. Ponto? Fecho o livro e pronto? Prateleira e citações sem contexto?

Nunca acreditei muito em últimas páginas, se as viro ao reverso nada mais são que as primeiras de outra narrativa. No entanto, há o que se acaba. O fim nos chega com o ineditismo próprio do que é repetido pela última vez. E um domingo chuvoso, propenso que é a melancolias prosaicas, parece-me ideal para finitudes poéticas.

O livro a ser guardado, com cara de fim de papo. Daquela pena, já sei, não escorrem outros universos.  Repousa em aquáticos desertos caribes. Os mergulhos conjuntos – profundos – resumem-se agora em uma prateleira repleta do mesmo nome: e só mundos viajados. Infinitos conhecidos deixam de ser infindos? A margem ampla só me sugere imensidões de reencontros. Tenho que voltar às mesmas águas para descobrir.


Fim do conto. Ponto? Não conto. 



infinitudes sentidas ap ler o último livro de García Marquez que ainda não tinha lido. 
ou seria o primeiro?

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A família que inventei para mim

O irmão que inventei para mim caminha cuidadosamente ao meu lado
ombro a ombro, braço dado
como se desde o ventre do qual não nascemos, nunca nos tivessem separado.

A irmã que criei para mim é irmã de verso, rima e carta
e, nesse vai e vem de palavra de lágrima
trocamos mesmo o sentido do gene comum que nos falta.

A mãe que sonhei para mim, pintei nas cores das mães todas que me adotaram,
e hoje, em uma onírica e segura distância, ela entoa cantigas,
e balança um berço no qual nunca me colocaram,
enquanto o pai que forjei dos pais vários, partidos, que encontrei
vela meu sono com atenta e cega constância.

Assim sigo a sina
de encontrar tias e fazer primas
e plantar folhas e colher raízes,
inventando a família que jamais tive
como pincel que em suave deslize
desenha o que o olho nunca viu.

(o amor, esse até um dia existiu,
mas, talvez por real demais, como veio, partiu
talvez apareça um dia para o chá

ou para saber da família)


Mariana Imbelloni Braga
Agosto de 2013

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O feminista misógino, o Bolsonaro e outros seres mitológicos (ou porque não aguento mais falar sobre homens no feminismo)

Há cerca de duas semanas conheci um novo e imprevisto ser para minha mitologia pessoal: o ~feminista~ misógino. Era um estudante de esquerda que reconhecia plenamente as opressões históricas contra a mulher – poxa, muito obrigada – e já tinha lido toda teoria que normalmente citada sobre o tema e também aquela muito além do que eu-reles-mortal possa sonhar que exista. Justamente, eu, reles mortal, deveria ler mais (isso eu sempre concordo, mas por outros motivos e em outros termos) porque “vocês, mulheres, não entenderam que o importante é...e o problema, de fato, é que “as mulheres não conseguem se articular para...”, além do mais, “as mulheres são incapazes de compreender que...” e... opa, peraí, o parágrafo não tinha começado falando de opressão?



Para além de compor a taxonomia sempre surpreendente da fauna e flora de gentes que encontro no mundo, propiciar-me uma tarde de discussão infrutífera e aumentar minha gastrite, o catalogar desse novo personagem fez-me pensar ainda mais na incansável (e cansativa) polêmica dos homens dentro do feminismo.
Cansativa, aliás, é pouco. Particularmente, ando me sentindo cercada. Tanto que relutei incrivelmente sobre escrever esse post – mais um no mar da internet – sobre o assunto!
Não tem uma conversa sobre feminismo que eu tenha tido nos últimos tempos que não tenha gastado muito (muito!) tempo discutindo justamente, veja só, homens.
 Da mesa de bar com as amigas aos grupos de whatsapp de coletivos de mulheres, das reuniões políticas às discussões acadêmicas, isso sem falar em todos os posts das principais páginas que acompanho. É como se mesmo para defendermos nosso protagonismo tivéssemos que abrir mão dele. Angustiante.
Por isso, mesmo relutante, resolvi escrever, aceitando o paradoxo de decidir falar sobre algo porque não aguento mais falar sobre isso. Pelo lançamento da campanha ElesporElas no Brasil – mais discussões. Pelo tal do feminista misógino. E também por causa do Bolsonaro. Do Bolsonaro? Sim, do Bolsonaro. Uma das outras notícias que vi compartilhada à exaustão essa semana foi a do Bolsonaro (filho) propondo emenda para retirada dos coletivos de mulheres e coletivos LGBTTs da Comissão Municipal da Mulher. Segundo o moço, assim ele estaria defendendo a “verdadeira mulher”. Pois é, gente, mais alguém querendo contar para a gente que existe e quem é a “verdadeira mulher”. Um homem. E o Bolsonaro.
Confesso que nunca tinha visto grande problema em dizer que um homem era feminista. Para mim era tão óbvio que o protagonismo dessa luta era, tinha que ser, só podia ser, das mulheres (cis, trans, negras, brancas, bi, hetero, homo) que nomear um homem como feminista só me dizia que ele era um homem que 1) reconhecia a dominação patriarcal e 2) ficaria atento para não a reproduzir 3) atuaria em todos os espaços em que é privilegiado para conscientizar seus pares e desconstruir seus privilégios.
Começou a me incomodar um pouco ano passado, com o discurso da Emma Watson, o famoso. Ainda intuitivamente, deu uma decepçãozinha de pensar que, poxa, minha personagem de infância estava na ONU para falar de feminismo e... ela estava indo lá falar sobre homens. E aí, de repente, mil pessoas que nunca tinham me ouvido quando eu falava de feminismo, amigas e amigos que nunca tinham dado a menor bola pra minhas angústias e minhas inquietações estavam falando sobre isso e... estavam falando sobre homens. A pulga ficou atrás da orelha. Coçando.
Mas se parasse por aí, ainda poderíamos, talvez, negociar.
Mas não para. Nunca para, né, gente.
Fui notando que vários homens em torno, legitimados pelo tal discurso, passavam de apoiadores das causas a críticos delas por “não terem o espaço deles” (?! acho que não entenderam a parte do usar seus espaços para desconstruir o machismo). E o “atuar nos seus espaços de privilégio” acaba virando desculpa para um certo “olha, não se preocupa se a luta pela representatividade política das mulheres não for vitoriosa por agora, tem uns homens feministas aqui, eles vão defendendo o direito de vocês até – ah, até algum dia”. Culmina no meu recém conhecido feminista misógino: “olha, já que você é burra e fraca, deixa que eu vou lá e acabo com essa cultura que acha que as mulheres são burras e fracas”


Se antes eu pensava na possibilidade do homem feminista tendo em mente meu amigo que – entendendo e estudando comigo questões de representatividade e protagonismo – sabe que não pode ir a um coletivo de mulheres e se cala quando eu discuto sobre machismo com um homem na presença dele, pois sabe que é importante que eu o faça (mas desconstrói “piadinhas” machistas na roda dos homens) percebi que o alcance político dessa categoria vai um pouco além. E é bem mais perigoso que eu pensava. As consequências estão aí, estão acontecendo, aqui e agora. Estamos gastando mais tempo falando de homens no feminismo do que das nossas pautas mais caras e importantes. Estamos debatendo internamente antes o lugar do homem no feminismo do que a – ainda – falta de representatividade das pautas trans (para ficar só no caso mais grave dessa carência). Estamos perdendo tempo, fôlego e energia em discussões entre mulheres sobre se os homens podem ou não ser feministas, enquanto ~cereja do bolo~ surge o Bolsonaro dizendo o que é uma “mulher de verdade” a ser defendida pela política pública da cidade do Rio de Janeiro.
Eu sei que não era no Bolsonaro que a Emma Watson estava pensando. Nem a ONU Mulheres. Nem ninguém em sã consciência. Espero que nem o próprio Bolsonaro se pense incluído nesse discurso. Mas, se a gente diz que os homens podem assumir frente de pautas feministas, e o Bolsonaro resolve que vai se arvorar como defensor dos direitos da “mulher de verdade”, como a gente vai explicar para ele que não é assim que funciona? Como a gente vai explicar que não era nele que a gente estava pensando e que isso aí de “mulher de verdade” ele cante no samba, se não puder evitar, e não acredite que existe - de jeito nenhum?

O feminismo atual, quando colocado assim no singular, já tem problemas suficientes de racismos, homofobias, transfobias internos para ainda correr esse risco . Os feminismos atuais, no plural, única forma como os acredito, já tem pautas e desafios suficientes para perder tanta energia em debates internos sobre, justamente, protagonismo masculino.

Isso não é ser contra homens. Não é segregacionista ou separatista. 

É só lembrar que, gente, nos feminismos, não era para a gente estar preocupado com as mulheres?








(Mesmo porque, como sempre converso com meu amigo que – mesmo que eu não o chame mais de feminista – segue sensibilizado para as questões de gênero, atuante em seus espaços de privilégio e ótimo interlocutor pra todas essas confusões da vida: um homem que realmente entendeu algo sobre as opressões e os feminismos, ah, não precisa ser chamado de feminista para fazer nada. Não reivindica um papel, porque sabe que tem muitos que nos são negados. Ele não vai ficar nem tentando explicar às mulheres –tolinhas -  como se faz. Vai fazer tudo que puder. Nos espaços dele. Convenhamos, espaço não é o que lhe falta.) 

sábado, 13 de junho de 2015

Cadê a Nélida que devia estar aqui? - nossas autoras em nossas estantes

Ontem fui à livraria trocar um presente que ganhei de aniversário.
Aproveitava a tarde agradável depois de uma semana particularmente corrida.

É que a ida a livrarias, esse mero cruzar de suas soleiras e o flanar por entre as estantes costuma ser, para mim, um delicioso ritual a ser degustado. Como chegar em uma festa e encontrar vários rostos conhecidos e queridos. Alguns desconhecidos, mas de aparência sumamente interessante. Daí abraço uns, aceno a outros, pego-me de conversa com um que só conhecia de vista, mas que me encanta no espaço de algumas páginas.
Foi, então, na melhor disposição literária e de espírito que entrei na loja. Pensava, depois de meus flertes habituais e- quem sabe – uma nova paixão livresca, trocar o presente (que era um livro que já tinha) pelo “Livro das Horas” da Nélida Piñon. Já havia lido trechos, gosto demais dela, queria tê-la mais perto de mim, na estante cotidiana. Mas não o encontrei por entre os títulos de literatura brasileira. A bem dizer, não encontrei nenhum livro da Nélida. Estranhei. É uma autora conhecida, com algumas-muitas publicações. A livraria era grande, repleta de clássicos e novidades literárias. Resolvi perguntar. O simpático vendedor me responde.
- Temos, claro. Está aqui embaixo.
Eu realmente não tinha olhado nas prateleiras abaixo da bancada, ao nível dos pés, pois acreditava que, normalmente, elas só tinham coleções inteiras. Abaixei-me e achei Nélida. Mas, curiosa por natureza e ainda mais quando se tratam de livros, fui passear os olhos pelas lombadas vizinhas. Estavam lá velhas conhecidas: Ana Maria Machado, Lya Luft, Ligia Fagundes Telles, Zélia Gattai. Não eram coleções, eram livros esparsos de cada uma dessas autoras. Sim, só mulheres.
Levantei-me novamente, ainda descrente da observação, e encarei a estante alta e imponente, em ordem alfabética de sobrenomes. Havia autoras. A inescapável Clarice. Sylvia Plath, supreendentemente. Não muitas outras. Estavam lá, claro, todos os Guimarães e Gracilianos, Rubens Bragas e Fonsecas, Chico Buarque e Marcelo Rubens Paiva, Caio Fernando Abreu e todos os autores famosos brasileiros que me ocorreram procurar. AutorES. As autoras pareciam vazios inexplicáveis na estante abarrotada. Depois do Paiva, não viria uma Piñon?
Não, péra, para de reclamar, leitora desatenta. Elas estavam ali. Ali embaixo. Porque, afinal, provavelmente seria pedir muito pedir que as tivéssemos à altura dos olhos.
Percorri superficialmente outras estantes, com aquela angústia indizível de quem enfim vê. Na literatura estrangeira, igualmente, uma diferença gritante entre homens e mulheres. Em poesia idem. Onde estava Elisa Lucinda? Nenhuma Adélia Prado? Ao menos um da Viviane Mosé e um da Thereza Cristina Roque da Motta (poeta e querida amiga) para salvarem a situação. Milhares de Nerudas e nenhum Gabriela Mistral? Será que o Nobel de um homem vale mais que de uma mulher? O da mulher vem tipo com uma nota de rodapé – “Isso na verdade não quer dizer que a obra dela deva ser lida e divulgada, foi só uma piadinha nossa aqui na Suécia”?
Porque, para quem não sabe, Gabriela Mistral, poeta chilena que viveu na primeira metade do século XX (inclusive um tempo aqui em nossa terra brasilis) foi a primeira a ganhar o Nobel da Literatura na América Latina. Sim, quando digo primeira, não estou dizendo primeira mulher, estou dizendo primeira pessoa (só essa pequena sentença já dava uma hora de conversas regadas de Beuvoir), antes do seu conterrâneo Pablo, bem antes do colombiano García Marquez. Mas nós devemos achar que isso foi uma distraçãozinha do povo lá de Estolcomo, já que não a traduzimos, não a citamos, não a lembramos. (mas sem o Neruda, ó, céus, como falar de amor sem Neruda?)
Não, não quero falar mal de Neruda nem de seus poemas, pelos quais igualmente suspiro. Menos ainda de García Marquez, que todos sabem ser meu encantador de realidades favorito. Tampouco quero desmerecer a constância em toda e qualquer estante de Machados, Josés, Jorges e afins. Só que eles não podem estar lá sozinhos.  As mulheres escritoras não podem estar embaixo. Se Zélia e Jorge se escolheram mutuamente como companheiros de vida e letras, agora os separamos por cima e baixo, visível e invisível na prateleira?
Porque isso, travestida de uma vaga ideia (um cado obtusa) de excelência literária, tem tudo a ver com a desconsideração da mulher como ser pensante, como alguém que tem algo interessante a dizer. As mulheres são objetos dos olhares, são personagens das narrativas, são musas inspiradoras das odes.  Devem, por isso, deitar-se confortavelmente em um divã, fazer pose, e esperar que se diga tudo sobre elas.
Mas não são dignas de pegar a caneta. De terem suas vozes ouvidas e consideradas. Se falam, até é tolerado. Mas nunca o mesmo espaço. Nunca a mesma divulgação. Nunca, nem mesmo, a mesma leitura.
Se falam, diz-se “falam como mulheres”. Como se isso fosse evidente. Como se isso fosse um desvio da fala “neutra” do homem.
Lembro vivamente do dia que ouvi Isabel Allende na Flip. Uma das palestras mais impactantes e transformadoras que já vivi em minha vida. Questionada sobre as críticas que sofria por ser “muito romântica”, Isabel riu e perguntou.
- Você já leu “O Amor nos tempos do cólera”? Então me diz porque ninguém critica o Gabriel por isso? Porque não consigo pensar em um romance mais água com açúcar. Ah, sim, porque ele é homem. Ele pode escrever o que quiser. O problema é que a mulher vai ser criticada pelo que quer que ela escreva.
O que me faz pensar em um poema do século XVIII que encontrei esses dias, que fala justamente sobre a dificuldade enfrentada pela mulher que quer escrever. Somos tão “igualitários” e tão “evoluídos” e “estamos cansados das feministas vendo problema em tudo”. Mas o poema segue atual.

Eu, de minha parte, seguirei reclamando. Quero chegar à livraria e, na festa dos livros conhecidos e ainda a serem lidos, ver elas, minhas autoras. Quero poder esbarrar com elas bem no meio da estante, ou – ainda – na bancada, em franco destaque. Quero ouvir o que elas têm a me dizer sem ter que ir procurá-las nos recantos. Quero-as na altura dos meus olhos. Quero poder ver-me nelas e que me vejam também elas.
Por isso, cada vez mais: ler mulheres, escrever sobre mulheres, declamar mulheres.
Por uma estante para também chamar de nossa.


Ps: Em tempo, reclamei com funcionários da livraria que, um pouco sem graça, explicaram algo sobre o rodízio de livros que não fez exatamente sentido, mas disseram que ficariam atentos. 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

As mulheres das estatísticas (também) somos nós: aprendendo a dizer assédio

Cheguei revoltada ao Centro da cidade para encontrar um amigo. No metrô, a velha história do homem-ao-lado-no-assento-que-perdeu-alguma-coisa-muito-importante-no-bolso. Essas grifes de hoje em dia que fazem bolsos maiores que mochilões de viagem, coitados dos moços, né, gente. Meu amigo não entendeu. Expliquei que podia servir para passar a mão em alguma mulher perto, que eu já tinha tido alguns problemas com isso, ou também uma forma "discreta" de masturbar-se em público. 
- Espera! Você já teve problemas com isso? 
- Ô, nem te conto. Inclusive teve uma vez que... 

- Não, mas então você já foi assediada no ônibus? Que ônibus? Que metrô?
Encarei ele, meio incrédula. Ele sabe que pego metrô e ônibus basicamente todos os dias da minha vida. E que são nesses metrô e ônibus que temos relatos e estatísticas e mesmo políticas públicas para coibir o assédio contra mulheres. Convenhamos, não é uma matemática difícil. 
 - Os que pego todo dia?
- Sério, cara? Tipo, então, para vir aqui para o centro? É o mesmo que minha mãe, minha namorada pegam. Será que...? Não quero nem pensar nisso. 
Não aguentei e perguntei:
- Você conhece as estatísticas. Com que mulheres você achou que isso acontecesse?
- Não sei. Com outras. 
Ah, claro. As outras, sem rosto e sem nome. As outras, que necessariamente não conhecemos. Quão úteis nos são para podermos fingir que aquela violência não nos atinge. As outras, as que compõe estatísticas, que moram longe da gente, de quem podemos nos compadecer sem grandes incômodos. 
Que outras distantes mulheres (teve aquelas em São Paulo, né?) sofram assédio em transportes públicos, é revoltante e errado, mas posso dormir com isso. Mas que "minha mãe", "minha namorada" e "minha amiga" encarem isso diariamente no caminho do estágio, trabalho ou faculdade, não, não dá.
Mas não escrevo isso (só) para falar da cegueira do meu amigo homem-cis-branco-hétero que nem pega lá muito metrô, essa até chamei bastante atenção pessoalmente. 
Fiquei pensando depois porque eu, sua mãe, sua namorada, nunca lhe tínhamos falado de nada disso. Por que não falamos do assédio cotidiano que vivemos? 
Porque nunca aprendemos a chamar de assédio. 
Assédio é algo grave que beira o estupro, provavelmente deve incluir umas ameaças explícitas e órgãos genitais pra fora. Essa mão apoiada na nossa perna, pura distração. Esse tombo acidental com a mão di-re-ta-men-te no nosso seio, mas ora, como eu ia saber onde ia cair? Esse segurar na cintura como se a gente fosse parte da estrutura física do transporte, é que eu ia desequilibrar, moça. Claro. 
Em qualquer roda de mulheres que você sente e puxe o tema com um "Meninas, olha o que acabou de me acontecer no ônibus." vão pipocar histórias de olhares fixados em peitos por mais estações que as esquecidas de construir pelo governo estatal, gestos obscenos, cantadas pra lá de inconvenientes, encoxadas, homens que sem-querer-dormindo deitam no colo e começam a se refestelar por ali, carinhos no cabelo, cheiradas, mãos por baixo da saia, a lista é desesperadoramente infinda. 
Mas se na mesma roda se pergunta "Quem já sofreu assédio em um transporte público?" se uma disser que sim já é quase vitória. 
Porque aprender a chamar de assédio é romper- um pouco- o ciclo da violência. É romper a dominação que te faz acreditar que, de alguma forma bizarra e inexplicável, você mereceu. Que aquela saia, afinal, era curta. Ou era tarde. Ou seu cabelo podia estar preso. Ou você podia estar de burca e ser uma faquir que não ocupa mais espaço.
E chamar de assédio é poder falar sobre. Mas também, é dever falar sobre. É saber-se parte das estatísticas. É assumir-se parte das estatísticas e começar a lutar contra elas. 
Lembro a primeira vez que me dei conta que sofria um assédio. 

Estava de saia no metrô. Nem estava muito cheio. Estava em pé, lendo. Um homem parou ao meu lado e colocou sua mochila no chão, rente à minha perna. Um minuto depois, mudou de ideia e pegou a mochila, para isso tendo que encostar um pouco mais que o necessário na minha coxa. Mas não achei que era um problema. Segui lendo. Ele largou a mochila de novo. E repetiu o ritual de erguê-la com apoio da minha perna. Pensei vagamente que eu devia ter vindo com uma saia maior. Pela terceira vez ele colocou a mochila no chão. Pela terceira vez subiu passando a mão na minha coxa. Ainda assim não achava que era assédio, só achava que não queria estar mais perto daquele homem. Afastei-me e prossegui a leitura. Não vi ele se aproximar e colocar novamente a mochila no chão, só senti ele erguê-la demoradamente, agora levantando também minha saia. Entendi, assustada, dei um pulo para o lado e o encarei, lívida. Ele me disse, cínico, "minha mochila tinha caído". A porta abriu e eu saltei sem olhar qual era a estação. Eu não tinha conseguido dizer nenhuma palavra. Ainda da plataforma, olhando o vagão, vi ele se aproximar de outra mulher. 
Não sei quanto tempo fiquei parada naquela estação, odiando minha saia, odiando meu silêncio, em suma, odiando-me. Saltei do metrô e fiz o resto do caminho a pé. Bendita seja toda caminhada que me organiza os pensamentos. Não era culpa minha, nem da minha saia, a culpa era dele e aquilo era um assédio. E eu não mais me calaria. 
Desde então, aprendi a chamar de assédio o que é assédio. Mesmo que exista uma gradação da gravidade, são todos parte da mesma lógica de disponibilidade do corpo feminino, da mulher como objeto público acessível para quem quiser esticar a mão. Chamar de assédio o que é assédio é dizer para a mulher: você não precisa passar por isso. E para o homem: atenção, você pode estar fazendo alguma mulher passar por isso. (porque, sem hipocrisia, se 3 em cada 4 jovens brasileiras já foram assediadas no transporte público, e não acredito em uma pequena seita com superpoderes que se multiplica nos metrôs brasileiros, os homens que fazem isso também estão muito perto da gente). Chamar de assédio o que é assédio é fazer existir para poder conscientizar e lutar contra.
Assédio é o que acontece com as “outras mulheres”. Mas em uma sociedade tão marcada por diferenciações de gênero, de alguma forma, somos todas outras, enquanto mulheres.
Porque mulheres.


terça-feira, 5 de maio de 2015

Desventuras do leitor digital

Depois de anos de campanha fervorosa de amigos entusiastas, aproveitei meu aniversário e uma promoção para me render aos tais leitores digitais. Chegou rápido pelo correio (tudo sempre rápido quando estamos nesse campo semântico). Logo no primeiro dia que o incorporei a minha rotina, uma amiga sincera resumiu bem a situação: - É ótimo, mas não combina com você. Verdade, mas respondi com igual honestidade: - Eu sei, mas combina com minha coluna. 
Para tentar resolver a equação entre eu e minhas costas (não ter livros na mochila cotidiana não era uma opção, só pra constar), resolvi fazer a concessão digital para os livros teóricos, que cada vez são mais encontráveis em e-books mesmo, e para as séries de ficção, que-pelos-sete-deuses-e-pelo-senhor-soberano, como são pesadas. Minha literatura de degustação, os autores-amigos que preciso ver na estante e dizer bom-dia para ter uma boa rotina e folhear ao acaso no fim de semana para saber como andam, esses seguirão sempre impressos, com bordas dobradas nas passagens marcantes, mancha de café e uma carta esquecida no meio. 
Isto tudo posto e exposto, fui vivenciar minhas primeiras aventuras como leitora digital. Dias de semana, sou uma leitora em movimento. Para conciliar as mil atividades e a necessidade de letras, resolvi fazer do caótico transporte urbano minha sala de leitura. Metrô, barca, ônibus, espremida no cantinho do lado do trocador, sentada nos degraus do 1001, na eterna fila do ônibus do metrô, parada morrendo de claustrofobia entre as estações da Carioca e da Cinelândia, e por aí vai. Confesso que, nessas condições, senti menos falta das páginas escritas que imaginava. O leitor digital é mais fácil de segurar, mais leve, mais ajeitado para leitura in extremis. Só que houve uma perda imprevista, e irreparável. 
Não sei mais as reações às minhas capas.

Antes, e sempre, divertia-me com os olhares tentando decifrar que-livro-aquela-guria-está-lendo-ali-no-canto. Olhares de aprovação quando identificavam o autor, curiosidade quando não. Um profundo desalento de um senhor quando me viu com Alexandra Kolontai. Suspirou, como se dissesse, "tão simpática e lendo uma bolchevique". Vez ou outra, sorte!, se começava uma conversa - Não acredito, você tem o volume final de Duna, sempre procurei. - Estão relançando, as Bene-Gesserit estão incríveis nesse. Ou ainda um dia que tive uma crise irrefreável de riso com "A Sereia do Rocha", da Leila Oli, e mostrei a capa para o vagão de metrô que me olhava, curioso. 
Com meu super-leve-legal-leitor-digital, nada mais disso. Por mais que para mim siga sendo um portal de infinitos, tenho em minha mão um objeto padrão. Impessoal. 
Hoje mesmo, li uma passagem espirituosa e comecei a rir no ônibus matutino. Uma simpática senhora me sorriu e buscou ver do que eu ria. Olhou o objeto digital dele só podendo inferir a marca - única coisa nunca escondida no nosso tempo-, virou-se para frente e seguimos a viagem. 
Senti como se de repente eu jogasse uma cortina disforme cobrindo todos os rostos e nomes e imagens e cores dos autores e autoras que formaram e formam meus óculos de ver o mundo. Como se eu relegasse todos a um anonimato digital, sem rosto, sem particularidades, só chips.
Desci do ônibus sentindo-me um pouco mais sozinha. 
Desculpa, querida coluna, mas vamos ter que renegociar. 



quinta-feira, 30 de abril de 2015

Feliz Maio Novo!

para Letícia e Juliana
comparsas nessa subversão do calendário



Chovia. Como podia que não chovesse, para umas ideias como aquelas. Há pensamentos que não comportam dias de sol. É preciso certo aconchego, certo recolhimento, certa sobriedade. Tomava seu café assim, envolvida por aquela umidade aveludada dos dias de chuva branda, enquanto observava a decomposição em pingos preguiçosos da urbe desbotada.
- Mas nem me esperou para pedir o café!
- Achei que você já não vinha. Essa chuva!
- Não está tão forte. É que você sempre se prepara para ausências.

Era verdade. Uma dolorosa e evidente constatação. Esperava sempre o fatal momento da despedida. Como se tivesse na sala um porta-retratos já vazio, aguardando que partida ele passaria a significar. Nunca deixava de ter adeuses para confirmar seus receios, contudo.
- Além do mais, você está triste. Eu tinha que vir.
Fechou os olhos para melhor sorver o café e a frase. Dita assim, em voz alta, sua tristeza parecia ser dotada de uma irremediável solidez. Uma melancolia quase tão palpável quanto a cidade. Ela, tão embaçada quanto o horizonte garoado.
- E agora, já sabe?
- Já sei o que? O que fazer? Sei lá, um pé na frente no outro, a gente vai andando.
- Não tem outro jeito.
Não tinha. Nunca tinha, de fato. Como nas longas caminhadas com a mãe, na infância. No final, para não chorar nem pedir colo - não gostava de pedir nada-, fechava-se para todos os pensamentos e só recitava de si para si “um pé. outro. um pé. outro”. E quando voltava a raciocinar tinham chegado. Por isso adotara para si esse mantra de vida.  
- Não esperava isso. Não dessa vez.
- No fundo, mesmo os pessimistas como você, a gente nunca espera. Mas a vida vem e nos acontece a todos.
Era isso. Era esse o resumo. A vida tinha chegado tão imprevista e certeira quanto uma tempestade de verão. De repente, enchente. De repente, parecia ter sido levada pela correnteza. E nem sabia se a vida era a casa demolida ou a correnteza demolidora. Não importava, provavelmente. Fitou o vazio, distante. Sentia-se quase invadida pela própria água metafórica que acabava de pensar.
- Estava pensando em irmos ao cinema mais tarde. Tem um filme que queria ver no Centro.
- Você e o Beto não vão viajar no feriado?
- Se formos, é só amanhã de tarde.
Não era. Tinha quase certeza. A mensagem trocada semana passada, ela com certeza dissera outra coisa. Pela primeira vez olhou-a. Tão permeada em suas lembranças, que nem conseguia dizer como tinha mudado nos últimos dez anos. E, pensou assustada, eram já dez anos. Ela estava ali. Mais palpável que sua tristeza, era aquela presença. Até a viagem com o Beto – que era um cara legal – podia esperar vinte quatro horas. Esse pensamento reconfortou-a como sofá e chá quente em dia de inverno. Enxurrada. (da correnteza? dela?)

- Sei lá, cara, às vezes tudo isso parece tão destituído de sentido. Tanto tempo, tanto cuidado, para criar um pequeno mundo, um pequeno pedaço de chão. E aí, do nada, não tem mais chão. Nem posso mais dizer um pé na frente no outro, sabe. É como andar em uma nuvem. Não, é como andar em um buraco. Como se eu fosse o Coiote, que continua andando depois que a estrada acabou, correndo no abismo só porque se esqueceu de olhar para baixo. Aí ele se dá conta, olha para câmera e cai. Às vezes acho que só falta olhar para câmera para cair. Mas nem coragem de olhar para ela eu tenho. Nem de olhar para baixo.
- Você não precisa cair primeiro. Pode se acostumar a andar no ar.
- Andar no ar tem vantagens. Mas só consigo se eu não olhar mais para o chão.
- Não olha. Faz mal para coluna andar olhando para o chão.
Riram. Tinha uns dias que ela não ria. Era como um afago.
- Olha, não atrasa sua viagem por mim não. Vai hoje mesmo. Eu estou bem. Você sabe como eu sou. Vou chorar um pouco mais, me enrolar no cobertor e ver um musical, mas tudo isso faz parte do processo. E semana que vem ainda precisava que você me ajudasse com os papéis, acho que não é complicado, mas você entende melhor disso que eu. De todo jeito, vai viajar, sério.
- Não tem mais viagem, na verdade. Nem tem mais Beto. Mas depois a gente fala disso.
- Como assim? Como você tá? O que houve?
- Não sei direito. Sério, não ri, eu não sei. Foi uma briga tão boba, você não vai acreditar. Mas aí desandou tudo. E estávamos até com hotel reservado. Engraçado dizer isso, a gente sempre se apega às coisas práticas. O hotel é o menos importante de tudo. Acho que, na verdade, os Betos são gente de ir. Eu estou cada vez mais de ficar. Foi isso.
Ficou sem saber o que responder. Elas dividiam o mundo entre pessoas “de ir” e “de ficar”, aquelas que estavam sempre inquietas para ganhar o mundo, e as outras que buscavam cuidar do jardim para ver o mundo através do seu quintal. Era divertida e útil a catalogação, embora, lógico, imprecisa e simplista. Elas mesmo cada hora eram uma das duas coisas. Sobretudo, era sempre tardia quanto a relacionamentos.
- Cara, que ano. É só abril e já deu tanta coisa errado para gente.
- Né? Começou tão simpático, aquela noite boa lá em casa. Dá pra voltar e começar de novo?
- Não dá. Mesmo porque ia ter que passar de novo a virada com o Beto e agora eu que não estou afim.
- Então dá pra gente adiantar pra dezembro logo? Um ano novo caia bem agora.
As duas suspiraram, cansadas.
- Ah, a gente faz um.
Fez um muxoxo, descrente. Ela insistiu:
- Não, sério, hoje é 30 de abril. A gente começa outro ano amanhã em maio.
Animou-se:
- Pode ter réveillon? Não te­­­m graça ano novo sem réveillon.
- Claro. A gente vai ao cinema e depois vai para praia pular 7 ondas.  Amanhã é feriado. Igual 1º de janeiro. Dá pra dormir até tarde e almoçar celebrando os direitos do trabalhador e a paz universal.
- Acho que vou passar de azul. Quero serenidade.
- Eu passo de qualquer coisa, menos vermelho.
- Podíamos comprar um champanhe.
- Acho que tem um lá em casa que o Beto deixou. Era pra defesa da tese dele.
- Mas não vai te lembrar no Beto?
- Não. Nosso eterno trabalho de ressiginificar. Vai me lembrar nosso primeiro réveillon particular.
Riram.
- Maio novo, então?
- Maio novo.
Ergueram as xícaras e disseram ao mesmgo tempo:
- Feliz maio novo!
Agora já gargalhavam. E brindaram, entre vivas e se abraçando, para espanto da cafeteria.
Voltaram a sentar trocando olhares cúmplices. Acabavam de assassinar uma continuidade. Vinham de cometer uma inovação. Possuíam agora um ano novo particular. Recomeçariam escancaradamente, enquanto os outros calendários esperavam, exaustos, dezembro. Saíram conversando sem repararem que ainda garoava.
Um pouco embriagas de café e chuva. Um pouco inebriadas por esse afeto tão sincero e calmo que atende pelo nome de amizade.
Ela olhou para baixo, e viu que o chão não estava longe. Não, Coiote, não precisa cair. Tem um pedaço de chão aqui do seu lado, caminhando na chuva.
Amanhã era maio. Sempre era novo. E iam juntas. 


quinta-feira, 23 de abril de 2015

Da minha banca de jornal, vejo o mundo

Gosto de bancas de jornal. Parecem-me pequenas ilhas de letra nos cotidianos tão falados, na cidade tão imagética. Discordando de Bandeira, às vezes a vida me chega pelos jornais, pelas manchetes, pelas palavras coloridas das revistas.
Por isso, aproveitando a calma do feriado para visitar uma amiga, sem hora marcada para chegada, sem correria para alcançar o ônibus, parei em frente a uma banca para apreciar o mundo sob aquela óptica, enquanto tomava um sol de outono carioca bem a calhar.(Claro que, para manter a magia, tenho que desviar discretamente da parede de revista de mulheres semi-nuas que toda banca que se preza precisa ter. Sempre me pergunto se algum policial teria coragem de prender uma mulher por "atentato violento ao pudor" se ela fizesse topless em solidariedade a todos aqueles seios livremente expostos.)

Mas todo meu bucolismo de leitura de manchetes se desfez com a seguinte inacreditável junção de vocábulos:


“VAGABUNDA, SÓ TE PEGO PARA VOCÊ LEMBRAR QUE AINDA É GENTE”
Personagem 1 e Personagem 2 se apaixonam.

Li, reli, trili, sim, era isso mesmo. Um personagem tal em alguma novela que não sei identificar tinha dito para uma mulher que somente o fato de ele “pegar” ela era o que a transformava em uma pessoa. E para alguém, em algum universo paralelo ao meu, isso significava que eles se apaixonavam. Ah, claro, como não amar o ser maravilhoso que me concede meu status de “gente”? Ele, tão incrível e condescendente, saiu do pedestal inalcançável de homem dele para vir aqui e me permitir existir um pouquinho. Claro, só se relacionada a ele, mas fora isso também já era querer muito. Vamos lá, meninas, quem não se apaixonaria?
Sigo minha leitura de manchetes, já achando menos graça no sol carioca e no feriado, quando vejo, ali, a uma coluna de revistas de distância, outra manchete, menos incrível, porque terrivelmente constante:

MORTA A PAULADAS FOI ASSASSINADA E ENTERRADA PELO MARIDO
Filhos denunciaram agressões constantes do pai.

Dei um passo atrás para poder observar a cena de ambas manchetes lado a lado. Pensei em tantos interlocutores que já me disseram que relacionar uma “frase pontual” ou uma “piadinha boba” com violência e assassinato era exagero. Será que eles também conseguiriam negar ali, uma do lado da outra?
Vamos gente, não preciso nem de falar em filosofia da linguagem aqui, o raciocínio é dolorosamente simplista:

1)                     Aprendi a vida inteira que sou eu, homem, que legitimo a existência dessa mulher.
2)                     Eu estou com uma companheira, eu concedo existência à ela.
3)                     Eu TENHO uma mulher. É MINHA.
4)                     Ela fez algo que não gostei.
5)                     Se eu que “fiz ela ser gente”, também é meu “direito” que não seja mais.

Enquanto afirmarmos para os homens que toda existência de suas companheiras deles depende, a eles pertence, não podemos nos assustar que diariamente surjam casos de assassinato e violência por motivos banais. Enquanto afirmamos para as mulheres que elas precisam estar em um relacionamento para serem legitimadas socialmente, que “mulher não deve ficar sozinha”, não podemos nos assustar que as mulheres se resignem à situações de violência continuada e extrema.
Não adianta querer mudar uma manchete sem repensar a outra. A banca de jornal, em seu exato microcosmo, não permite. 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

“Mas para que tanto adjetivo?” – pergunta, confuso, o sujeito universal

Amigos vieram me perguntar, afinal, o porquê de tudo agora precisar de adjetivos. Tudo que eles tinham sido por uma vida inteira, sem nenhum problema, sem nenhuma questão, agora precisava de uma identificação? É recurso estilístico? É só encheção?

Ah, suspiro quase rindo, se os adjetivos fossem só de agora, era outra discussão.

Mas tudo que escapava a um específico padrão sempre teve seu nome bem definido. Para haver um “neutro” sempre houve um curiosamente populoso contingente da “exceção”.

Ou agora negro não é adjetivo, só porque é estranho ser chamado de brancão? Incomoda ouvir “tenho até um amigo hétero” para quem sempre disse gay e sapatão?  Precisa especificar que é trans ou travesti, mas ter que sempre lembrar que eu sou cis, aí já é apelação?

(sem falar nesse tal de “ser mulher”, que a gente fica tentando a beça entender o que é, mas perguntar o que é “ser homem”, isso é universal, precisa não)

Só por terem colocado esse problema, preciso dizer que eram amigos-homens-cis-brancos-héteros?

Só o sujeito universal se espanta tanto com essa tal adjetivação.

Nós, os relativos de toda sorte, temos uns bons séculos de prática.

Só que agora também aprendemos a adjetivar. E a ressignificar.  

Eu sei, sujeito universal, incomoda.

Mas você vai se acostumar.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Carta a um querido colunista imparcial e desinteressado

Querido Colunista Imparcial Liberal Sem Medo de Polêmica,

Que alívio ver aqui registrada essa carta! É um sopro de ar em nossas angústias diárias desde que nosso filho foi para Universidade.  Andávamos preocupados.  

Sabe, sempre criamos o menino dentro do melhor dos tradicionais valores da família brasileira, sempre pagamos tudo que ele queria e ensinamos que quem não tem tudo isso é porque não trabalhou o suficiente. Era um garoto tão bom, queria fazer Direito para trabalhar no escritório do pai, tudo como sempre sonhamos. Até, veja só, entrar realmente para Universidade.

Pegamos a grade de horário deles e já nos preocupamos: Filosofia? Sociologia? Antropologia? Sei não, heim, tudo que termina com –ia, sabemos bem, rima com Ideologia. Mas nos tranquilizaram, ele leria uns textos gregos, talvez até uns do século XIX, mas ninguém ia fingir que aquilo se relacionava com nosso mundo atual. De resto, estava tudo bem. A quantidade de cursos de processo nos aliviava os corações aflitos.

Mas aí começaram a acontecer coisas estranhas. Ele começou a ir em umas reuniões, parece que eles chamam elas de palestras, onde pessoas que pensam coisas das quais sempre discordamos falam. Veja só: FALAM! Em um microfone. E nosso filho tem que escutar! Escutar opiniões estranhas de gente que nós (você, e todo mundo que está dentro do nosso quadrado) já sabemos que está errada desde sempre e para sempre. Por que deixar falar? Liberdade de expressão sim, mas só pros humoristas e deputados, né?

Se ainda fosse um debate de verdade, se chamassem para essas, como eles chamam “palestras”, gente como a gente, que sabe o que é certo e errado, aí tudo bem. Nós dois sabemos bem que nesse tipo de conversa a gente não ouviria nada que eles diriam e gritaríamos no final o que sempre achamos. Mas isso não é um conceito de debate produtivo? Muito melhor que escutar os argumentos de alguém e depois refletir sobre eles.

 Quando nosso filho começou a fazer Sociologia nós, que já estávamos com a pulga atrás da orelha, nos desesperamos. Ao invés de só textos da fundação da disciplina ou hermeticamente incompreensíveis para uma prova de decoreba, a professora resolveu discutir a situação social do Brasil. Na matéria em que se vai falar das relações entre sociedade e justiça, ela me faz isso. Na matéria que prevê na ementa a relação entre a lei e a sociedade ela leva as crianças para ouvir gente do, como é que eles chamam isso, “movimentos sociais”. Incompreensível que se leve os meninos para ouvir esses movimentos que propõe reformas legislativas e essas coisas ao invés de uma aula padrão sobre mudanças legislativas em abstrato.

Para piorar, ainda abriram, nessas tais de palestras, espaço para pergunta no final. Só para fingir que estão tentando pensar juntos, debater ideias. Como se isso lá fosse espaço para realmente conversar. Todos sabem que debate produtivo só se faz com cartas anônimas e no facebook. 

É mesmo o cúmulo!

Não, a gente manda esse menino para faculdade para assistir aulas decentes e aprender a reproduzir os dispositivos legais (que podem mudar com as alterações legislativas), a saber citar a jurisprudência que interesse no caso, falar com vocabulário rebuscado para ser chamado de doutor, essas coisas.

Não para ouvir ideias diferentes, para ser colocado em outros diálogos, para que lhe sejam apresentadas outras visões de mundo. Achamos que ele está começando a... temos até medo de dizer.

Achamos que ele está começando a pensar.

Obrigada pelo espaço totalmente desinteressado,


Casal de Bem


(Carta em total apoio irônico e imparcial à http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/educacao/doutrinacao-ideologica-na-puc-rio-professora-troca-aula-por-monologo-de-feministas-e-mst/)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Guerra de cotovelos no ônibus de meia noite – ou aprendendo a me desencolher

Estava tão transcendente a meditação nas montanhas natais, que resolvi aproveitar até a última hora possível  o feriado & tentar escapar do trânsito da descida para essas paragens costeiras pegando o ônibus de meia-noite. A brilhante ideia era das mais óbvias: adormecer em Minas e acordar em terras cariocas às 6 da manhã, tomar um banho e começar a rotineira segunda-feira, como já tanto fiz em outras épocas dessas minhas travessias.
Vã esperança.
Quando saiu o ônibus de minha cidade, já ia quase cheio, mas ao meu lado ninguém havia. Tive mesmo uma ilusão de que na próxima parada, na cidade vizinha, entrasse um amigo querido com quem tenho um trato eterno de poltronas de ônibus. Sabendo ele que, sempre que posso, compro a 13 – número da sorte, começou a comprar a 14, para, quando o universo estiver de acordo e o acaso nos der sorte, seguirmos proseando serra abaixo ou serra acima.
Passando da cidade dele, perdida a esperança de perder o sono com conversa e colo amigos, e seguindo vazio o lugar ao lado, comecei a acalentar expectativas de que tivesse meu desconhecido parceiro de assento perdido o ônibus ou desistido da viagem, resolvido que melhor era seguir em Minas, que o Rio tem andado por demais estranho. E, assim, ganhava eu lugar para me espalhar, feliz, na preparação físico-psicológica que sempre precede essa volta.
Mas qual o quê! Já na terceira cidade (pois, pra quem não está familiarizado, se um ônibus não parar em ao menos 4 cidades no caminho não se pode considerar que saiu de Minas) chegou meu companheiro de banco, acabando com os devaneios de uma quase-cama. Resignada, ajeitei-me no pedaço de ônibus que me cabia e apressei-me a cair nos braços de Morfeu, que minha segunda-feira me esperava, ansiosa, na rodoviária.
No entanto, algo como 40 minutos depois, acordei, dolorida, em uma relação de amor muito séria com a janela, a ela quase me fundindo em paixão. Naquela confusão que antecede e prossegue o sono, indaguei-me que fazia eu da janela tão próxima, vez que tendências suicidas nunca foram meu forte, e se um dia chegarem pretendo ser mais dramática e poética nos métodos. Efetivamente despertando, vi que meu companheiro de viagem, em seu adormecimento, tinha se expandido para bem além dos limites de seu assento, pernas e braços abertos (eu já tinha dito que era um homem?). Provavelmente, então, fora eu recuando ao que ele se aproximava, ambos inconscientes, até o recuo não ser mais possível pelas leis da física, e eu ter acordado.
Acreditei – ah, eu e minha fé na humanidade – que era só delicadamente empurrá-lo de volta que tudo estaria resolvido. Se acordasse ficaria o viajante mesmo sem graça de ter assim incomodado sua desconhecida parceira de estradas. Com cuidado, reestabeleci nossos limites espaciais, afastando sua perna do exíguo espaço que tinha para as minhas, mesmo tendo a atenção de deixar um pedaço da divisória para cada um dos cotovelos. Que todos viajassem e dormissem contentes, que a segunda ali já vinha.
Ajeite-me, tranquila, e rapidamente adormeci, conseguindo mesmo encontrar o rastro de um sonho que antes já começara. Mas mal me aprofundava nestas aventuras oníricas, novamente acordei rendida à janela por um cotovelo militarmente apontado e pernas escancaradas (aliás, eu já tinha dito que era um homem?) do meu folgado meeiro de poltrona.
Dessa vez já irritada, afastei-o com algum alarde. Ah, que visse como andava a incomodar sua pacata vizinha, que tratasse de fechar as pernas e recolher seus cotovelos ao trecho da divisória que legitimamente lhe pertencia, que precisava eu dormir o sono dos justos (embora essa expressão sempre me incomode, que se tomada ao pé da letra seríamos mesmo um mundo de insones).  Pois que quando meu distinto vizinho acorda, aturdido pelos empurrões que nem tão forte foram, ao invés de balbuciar desculpas, ensejar um fechar de pernas, mudar a posição dos braços, ao contrário, olhou-me repressor, como que me pegasse em flagra de pequeno delito, rearrumou o braço de modo a expulsar meu cotovelo de qualquer nesga de espaço e abriu orgulhosamente as pernas (eu já cheguei a comentar que era um homem?) de modo a ficar uma quase no corredor e a outra a me fechar tanto que se não cruzasse eu as minhas não haveria espaço para elas. Mirou-me novamente, como a recomendar “não me venha fazer travessuras de novo” e adormeceu.
Fiquei eu, com um sentimento confuso de revolta e vontade de pedir-lhe infinitas desculpas pelo fato de ter incomodado minimamente seu precioso sono, encolhida no canto da janela, dosando a respiração para que não o tocasse por acaso. As pernas me incomodavam, um pouco inchadas e assim cruzadas. Encarando nossas pernas, as dele tão relaxadamente abertas, as minhas recatada e tensamente fechadas, é que me dei conta do que estava por trás do absurdo da situação. O espaço era dele, as pernas dele precisam estar abertas, a demanda dele define o espaço de cada um. O espaço público é dele, sempre. O meu, se eu o tivesse, seria em outro lugar que não esse, segundo me informam as propagandas, aparentemente continuo sendo rainha da cozinha se me apetecer. Agora viajando de madrugada, cruze as pernas e deixe lugar para quem é de direito. Eu já disse que era um homem?
Não tive dúvida, novamente afastei-lhe a perna e abri com o cotovelo espaço para me apoiar, fazendo questão de que ele acordasse com o movimento para que soubesse que não! eu não compactuava mais com esse diaxo de mentalidade que ensinara ele a colocar-se como quisesse e onde quisesse e a mim a retirar-me, contrair-me. Desencolhi-me com gestos que me pareceram de libertação. É minha metade de banco de ônibus! É minha possibilidade de ser um corpo tão necessitado de espaço quanto outro qualquer. 
Ao sentir seu cotovelo restrito à metade da pequena divisória, insistiu ele novamente contra o meu. Não arredei dali, colocando o cotovelo como ponta de lança de tantas batalhas e reinvenções que tenho me esforçado por travar, desencolhendo os braços com a força de quem anda tentando desencolher as ideias e as perspectivas, a voz.
Senti ele aos poucos tirar o impulso do braço, mas sem com isso recolhê-lo ao tanto que lhe caberia. Seguia encostando no meu, mas sem mais disputar o lugar. Demorei ainda alguns segundos para entender a nova relação travada, quando enfim percebi que seu braço não mais empurrava o meu, mas sim o roçava. Virei-me, estupefata, e vi em seu rosto não mais raiva, mas um olhar levemente sedutor, no tanto que se pode julgar sedutor um ser recém acordado no meio da estrada.
Ah, mas claro. Às 3h da manhã, exausta, no meio da BR, tudo que eu podia pensar era em acordar um desconhecido adormecido para um leve flerte viagem adentro. Sabem como é, não estávamos fazendo nada por ali. Em que espécie de mundo alguém primeiro pensa “Uhm, ela tá usando essa situação pra me dar mole” e não “Opa, estou enfiando o cotovelo nela há duas horas!”? Há de ser uma certeza realmente enorme de que aquele espaço só a ele pertencia e eu mais não podia ser que um braço que o dele procura.
Como momentos de ódio por vezes, e com alguma sorte, nos trazem também uma iluminação, peguei minhas duas bolsas que iam ao pé e criei entre nós uma barricada. Ele suspirou, não compreendendo o que tudo aquilo queria dizer, mas virou de lado e voltou a adormecer, agora à sua metade restrito.
Gastei ainda alguns momentos olhando a estrada antes de poder também dormir.
Invadiram-me dois cansaços infindos. Um, o físico, de saber que já era noite alta, quase Rio, que eu não recuperaria aqueles acordares-dormires e que teria dia longo em semana de provas para enfrentar. Outro, o mental, de tudo ter sempre de ser assim tão batalhado, desse desencolher-se ter que ser sempre contra alguém que cisma adentrar e dominar meu espaço. Pensei em tudo que se fala sobre o feminismo e, em minha pobre metáfora de ônibus de madrugada, quase disse: moço, eu não quero seu espaço, eu não quero seu banco, eu não quero nada além de poder andar desencolhida, de poder movimentar-me livremente na metade que me cabe, de poder, como você, apoiar meu cotovelo. 
Dormi, enfim, o resto do tempo que podia. Cheguei ao Rio mais cansada e torta do que previa.


Mas ainda mais ciente dessa missão diária e constante de me desencolher sempre.