segunda-feira, 30 de março de 2015

Jangada de pedra

lançada em direção a Saramago 

Não nasci continente,
não me foi dado pertencer.
Ainda que terrena, era trecho sobrante.
Demasiada água em mim,
Parca minha vazante.

Então é com calma rachadura
que nesse instante lanço-me, farta,
e sem tremura da minha pedra também faço jangada.

Num átimo perco o istmo,
não mais península, pois que não basta.
Assumo-me ilha, mas não ilho-me
que o mar abrace tudo que parta.


domingo, 29 de março de 2015

Encontro furtivo

Encontrei em uma livraria um livro que há anos não via
Saudamo-nos -contentes - tantas histórias trocadas.
Ele nem acreditou, mas o reconheci ainda pela contracapa.

Sentamo-nos para um café. Colocar o papo em dia.
Essa dádiva de poder reler e ser relida.

quarta-feira, 25 de março de 2015

"Um sentimento incômodo de solidão"

Essa piranha só quer roubar meu namorado. Mas também, olha o short, não se dá o respeito. Feminista só pode ser à toa, não tem um tanque de roupa pra lavar? Tá só querendo aparecer com essa história vitimista. Não confio em mulher metida a gostosa. Tadinha, ela é manipulada. Eu sou mais feminista que você.

Começo esse texto com um profundo suspiro. Não imagino outra forma de começar. Em coisa de duas semanas ouvi ou presenciei todas as situações acima & outras. Justamente em março. Justamente nas semanas em que vejo auditórios se encherem para falar de feminismos. Todas tão perto de mim que me deram certa claustrofobia. E lembraram certo deserto.

Quando eu fazia pesquisas históricas no Arquivo Nacional, lá nos idos de 2009 – e de repente me dou conta que já tem uns anos que estou nessas feminituras todas – encontrei um artigo do início dos anos 1980, cujo título jamais me saiu da memória: “Um sentimento incômodo de solidão”. Acho que nunca saiu da cabeça porque desde que comecei a me entender como feminista (e gente, que processo louco e lindo é esse de se descobrir tão vulnerável e tão potente ao mesmo tempo: saber-se alvo de tantas opressões mas, ao sabê-las ali, poder, enfim, procurar caminho de resisti-las) senti seguidas vezes essa recorrente solidão.

É uma solidão engraçada. Sinto ter ao meu lado metade da humanidade. E ninguém contra mim (não, homens, não os vejo como oponentes). E, ainda assim, me sinto só. Talvez seja porque esse diaxo dessa dominação simbólica realmente nos fez acreditar que somos inimigas, e que, mesmo quando nos reconhecemos como participantes de uma mesma luta, temos que competir. Talvez seja a violência incrível de acreditar que tanto eu quanto a mulher ao meu lado, de alguma forma, só existiremos na constância de uma presença masculina, pela qual temos que nos digladiar. Talvez seja porque interessa muito que nos acreditemos desunidas para que nada mude.

O texto da Irede Cardoso, aquele lá da década de 1980, falava das críticas de dentro e de fora do movimento feminista. Tem várias que acho muito válidas, até. O feminismo liberal já invisibilisou muitas causas, já deixou (quase todas as) mulheres de fora, já reproduziu muitas opressões. Tem pouco tempo que conseguiu olhar para si no espelho e perceber o quanto podia – ele mesmo – ser excludente. Daí descobriu-se podendo ser vários.  E agora muitos feminismos vão tentando tecer entre si uma grande teia de libertações.

Só que o sentimento de solidão perdura.  Porque ainda aprendemos e interiorizamos tristemente que qualquer discordância é separação. Que a feminista é chata e a gostosa é burra. Que se eu consegui algo é porque mereci, a outra mulher não fez o suficiente. Que não fomos feitas para andar juntas.

Toda vez que uma mulher vê em outra sua necessária concorrente, só porque é mulher, eu me sinto só, mesmo que não seja eu. Toda vez que uma mulher deslegitima a dor de outra, porque não foi ela que a sofreu, eu me sinto só, mesmo que também não seja minha dor. Toda vez que uma mulher se declara feminista e por isso acha que pode ditar a luta de outra mulher, eu me sinto só, mesmo que às vezes também seja eu.

Eu me sinto só, mas não quero estar só. E tenho decidido não estar só. Se me diz o mundo que a mulher é competitiva e desconfiada, chamo minhas amigas para um chopp. Quando me sussurram que ela-vai-roubar-seu-homem, explico que o homem não é minha propriedade e sim um ser racional que pode pensar sobre o assunto e chegar às conclusões dele.  Quando me dizem que minha luta é pouca, digo que ela será maior quanto mais juntas estivermos. Por isso, toda vez, desde 2009, que me bate esse sentimento desértico, lembro que o deserto é uma grande união de areias, e procuro mais mãos para dar e seguir a caminhada.

Decidir não estar só faz toda a diferença.







domingo, 22 de março de 2015

Corpos alvo e Corpos suspeitos - ou de quem é a cidade sábado à noite?

Voltava para casa de metrô um tanto ou quanto mergulhada no –enfim- capítulo final daquele livro que há milênios adiava o término, quanto notou que era observada. Pares de olhos aqui e acolá no vagão lhe vigiavam alternadamente. Alguns, intrigados, como que perguntassem “mas que fazes aqui?”, outros, repressores, como se já afirmassem que não devia ali estar. Ainda uns terceiros sorriam, marotamente, como que dissessem “já que está aqui...”.

Olhou de si para o entorno tentando entender o motivo das mensagens contraditórias. Não vestia nada provocante (mas ainda que vestisse, não se justificavam), não era o livro nenhum título chocante (mas ainda que fosse, não se justificavam), não fazia absolutamente nada de fora do esperado de alguém que visitara uma amiga sábado à noite e voltava para casa de metrô (mas ainda que fizesse, não se justificavam).

Prestando mais atenção ao vagão, no entanto, entendeu seu grande “pecado”. Ser a única mulher do último metrô de um sábado à noite. Ser um corpo feminino – por definição, algo a ser resguardado, senão obviamente disponível – locomovendo-se livremente pela cidade.  O incômodo lhe aumentou quando pensou no que conhecidas vozes lhe diriam se algo ali lhe acontecesse. “Mas você estava sozinha?” “Mas era o último metrô” “Mas você estava de vermelho”. Foi invadida por aquela irracional e conhecida sensação de culpa pelo fato de ser uma mulher, ter um corpo e querer viver a sua cidade.

Chegou à sua estação. De seu vagão, e de outros, só homens saltaram. Subiram todos juntos as escadas rolantes já desligadas. Os olhares se multiplicaram, ou assim a ela pareceram. A saída principal estava fechada. Teria de sair pela rua lateral, consideravelmente mais deserta. Não sabia se preferia andar rápido e ganhar a rua antes de todos ou diminuir o passo e sair por último, por isso alternava velocidades e começou a jurar que uma dupla lhe seguia o ritmo descompassado.

Por tudo isso, quando saiu enfim da estação, sentiu um franco alívio ao encontrar, na rua deserta, salvo pelos que saiam do metrô, um policial. Não que se sentisse muito à vontade com policiais, algumas lembranças definitivamente não eram boas, mas tão ensinada fora a associá-los à segurança que em momentos assim esquecia que também deles se deveria resguardar. Seguiu andando a ele próxima enquanto se dispersavam para um lado e outro todos os que saiam do metrô.

Quando, de repente e sem qualquer aviso, o policial parou um homem que vinha andando na direção contrária à dela, e começou a questioná-lo sobre o que fazia ele ali. Ele mal tentara responder quando, de novo sem qualquer justificativa, começou o policial a revistá-lo ostensivamente.

O crime para punição assim sumária, para ser antes suspeito que "pessoa-a-andar-na-rua"? Ser um corpo negro andando à noite pela Zona Sul do Rio.

Nada achando em sua revista, o policial deixou que o homem seguisse seu percurso. E apressou-se ela no dela. Não era a sua cidade. E menos ainda a cidade daquele homem. O corpo feminino sempre alvo. O corpo negro sempre suspeito.


A cidade é para alguns. E em algumas horas. 

sábado, 14 de março de 2015

Desconstruindo Ana

Acordou. Mas não abriu os olhos. Despertava sempre agraciada por certa irrealidade. Uma esperança! Talvez fosse ela também um pensamento, uma abstração. Um devaneio doce de alguém já esquecido.

Paulo Sérgio Zerbatto jun/10
Bastou, contudo, encarar o teto para se lembrar concreta. Irremediavelmente concreta. Cada músculo declarando firmemente sua existência frente ao dia que se avizinhava. Correu os olhos para as paredes brancas, pregos já sem quadros, marcas de poeira onde ela bem sabia móveis. O pé errou o chão ao se levantar, porque a cama já também era só uma lembrança no piso tanto usado, e nunca lhe pareceu tão frio o velho e conhecido colchão. Andou pelo quarto desviando dos móveis, que já não estavam senão em recordação, e fechou mais uma vez os olhos para ver o lugar como já não mais era.

Quando tornou a abri-los, porém, já não havia pés tocando o chão. Sem o tapete, agora enrolado lá fora, desfizeram-se ante o contato amargo da madeira. As mãos procuraram o apoio do armário, que já não mais se encontrava, e, assustadas, recolheram-se para dentro do braço. Ana encarou-se, cortada e desfeita. Mas não sentiu nisso agonia. Era como a reação óbvia que já esperava por todas as faltas que sentia. Pior que ser mutilado é ter de continuar vivendo com o membro amputado. Que já não mais lhe pertence. Com naturalidade que lhe sumiram as pernas e braços, carentes de sentido naquele desconhecido espaço. Se ainda houvesse seu cheiro, seria necessário um nariz, mas para que mantê-lo se parecia em desuso? E, assim, ela se desfez lentamente, a cada ausência evidenciada, sobrando os dois olhos que tudo observavam, sem desespero. Com alívio. 

Soube então, com uma inexplicável certeza, que era desconstruída em toda a sua incômoda realidade. Era desconstruída com tudo aquilo que fora seu e a deixara ou deixara ela de ser de tudo. E agora podia despertar como uma calma e fascinante memória, da qual alguém um dia se lembraria com um sutil prazer de fim de tarde. Ela não mais existia, e isso lhe era familiar. Pode fechar os olhos. E só não ser.

 (talvez, e isso é uma mera suposição, esse alguém a recordá-la fosse até outra versão dela mesma, reconstruída em um novo tempo ou outro lugar)



*Primeira versão de 2011. E muitas Anas desconstruídas desde então.

quarta-feira, 11 de março de 2015

União dos oprimidos pelo politicamente correto anônimos

Ontem, aprendi em uma aula que vivemos sob a égide de uma ditadura do politicamente correto. Ah, que sorte a minha ter um professor assim para me abrir os olhos. Eu, que tolinha!, jurava que vivia em uma sociedade estratificada e preconceituosa, na qual, aliás, era super cool fazer piada com tudo que não fosse lindo-loiro-hétero. Mas, depois de acordar desse devaneio esquerdista – só pode ter sido mesmo a maldita faculdade de História – pude enfim ver em que pé vão as coisas.

Saí da faculdade levemente atordoada pela revelação, mas imediatamente constatei sua veracidade. Em meu caminho até minha casa casa, nenhuma propaganda que dissesse que mulheres são loucas consumistas ou que devem preparar um bom jantar com “amor”. Várias bancas de jornal no caminho e nenhuma (ne-nhu-ma) parede recoberta de corpos femininos artificialmente perfeitos para minha pilulazinha de depressão diária. Poxa, como vou viver sem um santo outdoor no qual venho de brinde na compra de uma garrafa de cerveja? Muito opressor, cara.

Desnorteada, cheguei em casa e liguei a TV. Ela, decerto, salvaria meu dia. Ah, que ledo engano. Nas novelas, personagens negras tinham histórias próprias, não eram só empregadas domésticas e porteiros. Espera que piora. As mulheres negras não apareciam só como mulatas-sensuais-sedutoras! O auge da repressão enfim chegara! Encolhi-me no canto do sofá, acuada e deprimida, quando me lembrei: há uma luz no fim do túnel. Os programas de humor me salvariam. Respirei aliviada ao achar um passando. Há, qual o quê! Nenhum gay histérico e promíscuo, nenhuma mulher gostosa burra, nenhuma mulher “feia” sofrendo abuso sexual no metrô e me dizendo que isso era uma sorte. Ah, vá lá, nem estava pedindo muito. Só um relatinho de estupro de mãe de santo para salvar a pátria. Mas nada. Ah, malditos ditadores do politicamente correto que destruiram a cultura nacional.

Último recurso desesperado: a internet. Um comentariozinho enraivecido já me daria esperança de um futuro melhor. Mas – sim, é o ponto final da linha, amigos – em um post contra a presidenta da república só encontrei contestações políticas ao seu governo, só divergências ideológicas e acusações contra seu partido. Nadinha sobre sua vida sexual, minha gente? Nem uma referência sobre sua aparência física? Agora me diz, onde esse país vai parar? Contra um político da oposição tampouco achei alento nas críticas, nem um viadinho, nem um – ops, contra homens-brancos-héteros nunca tivemos xingamentos baseados em preconceitos mesmo.

Sentei-me novamente ao sofá encarando tristemente o vazio. Como pretendem que eu explique aos meus futuros filhos (porque é irrefutável que os terei. fui criada quando a mídia ainda podia me convencer que eu não seria mulher se não tivesse filhos, graz-a-deus) que não posso usar a expressão “preto de alma branca”? Vou ter que dizer que ela não faz o mínimo sentido porque as pessoas são iguais? Querem mesmo que eu diga para eles que dizer sapatão e viadinho não significa nada porque identidade sexual não é xingamento? Alôu, que mundo seria esse pra se criar uma criança?

Sinceramente, agora falando enquanto mulher, como vou viver sem minha dose diária de objetificação, infantilização e incentivo ao estupro? Como vou construir minha identidade assim?

Que bom a gente ter um professor atento à realidade do país.



domingo, 8 de março de 2015

Feminituras & Literalismos


Atendendo aos clamores de uma turba incansável de aproximadamente duas pessoas e meia, resolvi tecer das minhas esparsas ideias um blog. Um blog que é mesmo uma junção dos meus fios soltos de pensamento, daqueles que vêm no metrô ou na fila do supermercado, alinhavados com as palavras um pouco emboladas que perco madrugadas girando nesse fuso tecnológico virtual.

Como já sei de antemão que vou me perder no meio do caminho – como me perco mesmo bailando no meio de uma frase  - não previ modelos bem tracejados. Aponto meus nortes, para onde encaminho a agulha, mesmo que incerta sobre o bordado.

Não perdi esse hábito de ser óbvia – já é quase uma alegria – por isso, nada de novo nos meus fronts. Alinhavo minhas observações algo-como-feministas com minhas tentativas mais-ou-menos literárias, entrelaçando-as na tecitura frágil dos meus dias, como tenho feito desde que peguei na primeira caneta, mas sem nunca me dar muito por isso.

Tecendo literatura com feminismo, não podia dar senão feminitura e literalismo, que é tudo mesmo fio da mesma meada. E eu, entre eles, perdida. 

Ou, a bem dizer, na confusão deles encontrada.