para Letícia e Juliana
comparsas nessa subversão do calendário
Chovia. Como
podia que não chovesse, para umas ideias como aquelas. Há pensamentos que não
comportam dias de sol. É preciso certo aconchego, certo recolhimento, certa
sobriedade. Tomava seu café assim, envolvida por aquela umidade aveludada dos
dias de chuva branda, enquanto observava a decomposição em pingos preguiçosos
da urbe desbotada.
- Mas nem me
esperou para pedir o café!
- Achei que
você já não vinha. Essa chuva!
- Não está tão forte. É que você sempre
se prepara para ausências.
Era verdade.
Uma dolorosa e evidente constatação. Esperava sempre o fatal momento da
despedida. Como se
tivesse na sala um porta-retratos já vazio, aguardando que partida ele passaria
a significar. Nunca deixava de ter adeuses para confirmar seus receios,
contudo.
- Além do mais,
você está triste. Eu tinha que vir.
Fechou os olhos
para melhor sorver o café e a frase. Dita assim, em voz alta, sua tristeza
parecia ser dotada de uma irremediável solidez. Uma melancolia quase tão
palpável quanto a cidade. Ela, tão embaçada quanto o horizonte garoado.
- E agora, já
sabe?
- Já sei o que?
O que fazer? Sei lá, um pé na frente no outro, a gente vai andando.
- Não tem outro
jeito.
Não tinha.
Nunca tinha, de fato. Como nas longas caminhadas com a mãe, na infância. No
final, para não chorar nem pedir colo - não gostava de pedir nada-, fechava-se para todos os pensamentos e só recitava de
si para si “um pé. outro. um pé. outro”. E quando voltava a raciocinar tinham
chegado. Por isso adotara para si esse mantra de vida.
- Não esperava
isso. Não dessa vez.
- No fundo,
mesmo os pessimistas como você, a gente nunca espera. Mas a vida vem e nos
acontece a todos.
Era isso. Era
esse o resumo. A vida tinha chegado tão imprevista e certeira quanto uma
tempestade de verão. De repente, enchente. De repente, parecia ter sido levada
pela correnteza. E nem sabia se a vida era a casa demolida ou a correnteza
demolidora. Não importava, provavelmente. Fitou o vazio, distante. Sentia-se
quase invadida pela própria água metafórica que acabava de pensar.
- Estava pensando
em irmos ao cinema mais tarde. Tem um filme que queria ver no Centro.
- Você e o Beto
não vão viajar no feriado?
- Se formos, é
só amanhã de tarde.
Não era. Tinha
quase certeza. A mensagem trocada semana passada, ela com certeza dissera outra
coisa. Pela primeira vez olhou-a. Tão permeada em suas lembranças, que nem
conseguia dizer como tinha mudado nos últimos dez anos. E, pensou assustada, eram já dez
anos. Ela estava ali. Mais palpável que sua tristeza, era aquela presença. Até
a viagem com o Beto – que era um cara legal – podia esperar vinte quatro
horas. Esse pensamento reconfortou-a como sofá e chá quente em dia de
inverno. Enxurrada. (da correnteza? dela?)
- Sei lá, cara,
às vezes tudo isso parece tão destituído de sentido. Tanto tempo, tanto
cuidado, para criar um pequeno mundo, um pequeno pedaço de chão. E aí, do nada,
não tem mais chão. Nem posso mais dizer um pé na frente no outro, sabe. É como
andar em uma nuvem. Não, é como andar em um buraco. Como se eu fosse o Coiote,
que continua andando depois que a estrada acabou, correndo no abismo só porque
se esqueceu de olhar para baixo. Aí ele se dá conta, olha para câmera e cai. Às
vezes acho que só falta olhar para câmera para cair. Mas nem coragem de olhar
para ela eu tenho. Nem de olhar para baixo.
- Você não precisa
cair primeiro. Pode se acostumar a andar no ar.
- Andar no ar
tem vantagens. Mas só consigo se eu não olhar mais para o chão.
- Não olha. Faz
mal para coluna andar olhando para o chão.
Riram. Tinha
uns dias que ela não ria. Era como um afago.
- Olha, não
atrasa sua viagem por mim não. Vai hoje mesmo. Eu estou bem. Você sabe como eu
sou. Vou chorar um pouco mais, me enrolar no cobertor e ver um musical, mas tudo
isso faz parte do processo. E semana que vem ainda precisava que você me
ajudasse com os papéis, acho que não é complicado, mas você entende melhor disso
que eu. De todo jeito, vai viajar, sério.
- Não tem mais
viagem, na verdade. Nem tem mais Beto. Mas depois a gente fala disso.
- Como assim?
Como você tá? O que houve?
- Não sei
direito. Sério, não ri, eu não sei. Foi uma briga tão boba, você não vai
acreditar. Mas aí desandou tudo. E estávamos até com hotel reservado. Engraçado dizer isso, a gente sempre se apega às coisas práticas. O hotel é o menos importante de tudo. Acho que, na
verdade, os Betos são gente de ir. Eu estou cada vez mais de ficar. Foi isso.
Ficou sem saber
o que responder. Elas dividiam o mundo entre pessoas “de ir” e “de ficar”,
aquelas que estavam sempre inquietas para ganhar o mundo, e as outras que
buscavam cuidar do jardim para ver o mundo através do seu quintal. Era
divertida e útil a catalogação, embora, lógico, imprecisa e simplista. Elas
mesmo cada hora eram uma das duas coisas. Sobretudo, era sempre tardia quanto a
relacionamentos.
- Cara, que
ano. É só abril e já deu tanta coisa errado para gente.
- Né? Começou
tão simpático, aquela noite boa lá em casa. Dá pra voltar e começar de novo?
- Não dá. Mesmo
porque ia ter que passar de novo a virada com o Beto e agora eu que não estou
afim.
- Então dá pra
gente adiantar pra dezembro logo? Um ano novo caia bem agora.
As duas suspiraram,
cansadas.
- Ah, a gente
faz um.
Fez um muxoxo,
descrente. Ela insistiu:
- Não, sério,
hoje é 30 de abril. A gente começa outro ano amanhã em maio.
Animou-se:
- Pode ter réveillon?
Não tem graça ano novo sem réveillon.
- Claro. A
gente vai ao cinema e depois vai para praia pular 7 ondas. Amanhã é feriado. Igual 1º de janeiro. Dá pra
dormir até tarde e almoçar celebrando os direitos do trabalhador e a paz
universal.
- Acho que vou
passar de azul. Quero serenidade.
- Eu passo de
qualquer coisa, menos vermelho.
- Podíamos
comprar um champanhe.
- Acho que tem
um lá em casa que o Beto deixou. Era pra defesa da tese dele.
- Mas não vai
te lembrar no Beto?
- Não. Nosso
eterno trabalho de ressiginificar. Vai me lembrar nosso primeiro réveillon particular.
Riram.
- Maio novo,
então?
- Maio novo.
Ergueram as
xícaras e disseram ao mesmgo tempo:
- Feliz maio
novo!
Agora já gargalhavam.
E brindaram, entre vivas e se abraçando, para espanto da cafeteria.
Voltaram a
sentar trocando olhares cúmplices. Acabavam de assassinar uma continuidade.
Vinham de cometer uma inovação. Possuíam agora um ano novo particular.
Recomeçariam escancaradamente, enquanto os outros calendários esperavam,
exaustos, dezembro. Saíram conversando sem repararem que ainda garoava.
Um pouco
embriagas de café e chuva. Um pouco inebriadas por esse afeto tão sincero e
calmo que atende pelo nome de amizade.
Ela olhou para
baixo, e viu que o chão não estava longe. Não, Coiote, não precisa cair. Tem um
pedaço de chão aqui do seu lado, caminhando na chuva.
Amanhã era
maio. Sempre era novo. E iam juntas.