quinta-feira, 30 de abril de 2015

Feliz Maio Novo!

para Letícia e Juliana
comparsas nessa subversão do calendário



Chovia. Como podia que não chovesse, para umas ideias como aquelas. Há pensamentos que não comportam dias de sol. É preciso certo aconchego, certo recolhimento, certa sobriedade. Tomava seu café assim, envolvida por aquela umidade aveludada dos dias de chuva branda, enquanto observava a decomposição em pingos preguiçosos da urbe desbotada.
- Mas nem me esperou para pedir o café!
- Achei que você já não vinha. Essa chuva!
- Não está tão forte. É que você sempre se prepara para ausências.

Era verdade. Uma dolorosa e evidente constatação. Esperava sempre o fatal momento da despedida. Como se tivesse na sala um porta-retratos já vazio, aguardando que partida ele passaria a significar. Nunca deixava de ter adeuses para confirmar seus receios, contudo.
- Além do mais, você está triste. Eu tinha que vir.
Fechou os olhos para melhor sorver o café e a frase. Dita assim, em voz alta, sua tristeza parecia ser dotada de uma irremediável solidez. Uma melancolia quase tão palpável quanto a cidade. Ela, tão embaçada quanto o horizonte garoado.
- E agora, já sabe?
- Já sei o que? O que fazer? Sei lá, um pé na frente no outro, a gente vai andando.
- Não tem outro jeito.
Não tinha. Nunca tinha, de fato. Como nas longas caminhadas com a mãe, na infância. No final, para não chorar nem pedir colo - não gostava de pedir nada-, fechava-se para todos os pensamentos e só recitava de si para si “um pé. outro. um pé. outro”. E quando voltava a raciocinar tinham chegado. Por isso adotara para si esse mantra de vida.  
- Não esperava isso. Não dessa vez.
- No fundo, mesmo os pessimistas como você, a gente nunca espera. Mas a vida vem e nos acontece a todos.
Era isso. Era esse o resumo. A vida tinha chegado tão imprevista e certeira quanto uma tempestade de verão. De repente, enchente. De repente, parecia ter sido levada pela correnteza. E nem sabia se a vida era a casa demolida ou a correnteza demolidora. Não importava, provavelmente. Fitou o vazio, distante. Sentia-se quase invadida pela própria água metafórica que acabava de pensar.
- Estava pensando em irmos ao cinema mais tarde. Tem um filme que queria ver no Centro.
- Você e o Beto não vão viajar no feriado?
- Se formos, é só amanhã de tarde.
Não era. Tinha quase certeza. A mensagem trocada semana passada, ela com certeza dissera outra coisa. Pela primeira vez olhou-a. Tão permeada em suas lembranças, que nem conseguia dizer como tinha mudado nos últimos dez anos. E, pensou assustada, eram já dez anos. Ela estava ali. Mais palpável que sua tristeza, era aquela presença. Até a viagem com o Beto – que era um cara legal – podia esperar vinte quatro horas. Esse pensamento reconfortou-a como sofá e chá quente em dia de inverno. Enxurrada. (da correnteza? dela?)

- Sei lá, cara, às vezes tudo isso parece tão destituído de sentido. Tanto tempo, tanto cuidado, para criar um pequeno mundo, um pequeno pedaço de chão. E aí, do nada, não tem mais chão. Nem posso mais dizer um pé na frente no outro, sabe. É como andar em uma nuvem. Não, é como andar em um buraco. Como se eu fosse o Coiote, que continua andando depois que a estrada acabou, correndo no abismo só porque se esqueceu de olhar para baixo. Aí ele se dá conta, olha para câmera e cai. Às vezes acho que só falta olhar para câmera para cair. Mas nem coragem de olhar para ela eu tenho. Nem de olhar para baixo.
- Você não precisa cair primeiro. Pode se acostumar a andar no ar.
- Andar no ar tem vantagens. Mas só consigo se eu não olhar mais para o chão.
- Não olha. Faz mal para coluna andar olhando para o chão.
Riram. Tinha uns dias que ela não ria. Era como um afago.
- Olha, não atrasa sua viagem por mim não. Vai hoje mesmo. Eu estou bem. Você sabe como eu sou. Vou chorar um pouco mais, me enrolar no cobertor e ver um musical, mas tudo isso faz parte do processo. E semana que vem ainda precisava que você me ajudasse com os papéis, acho que não é complicado, mas você entende melhor disso que eu. De todo jeito, vai viajar, sério.
- Não tem mais viagem, na verdade. Nem tem mais Beto. Mas depois a gente fala disso.
- Como assim? Como você tá? O que houve?
- Não sei direito. Sério, não ri, eu não sei. Foi uma briga tão boba, você não vai acreditar. Mas aí desandou tudo. E estávamos até com hotel reservado. Engraçado dizer isso, a gente sempre se apega às coisas práticas. O hotel é o menos importante de tudo. Acho que, na verdade, os Betos são gente de ir. Eu estou cada vez mais de ficar. Foi isso.
Ficou sem saber o que responder. Elas dividiam o mundo entre pessoas “de ir” e “de ficar”, aquelas que estavam sempre inquietas para ganhar o mundo, e as outras que buscavam cuidar do jardim para ver o mundo através do seu quintal. Era divertida e útil a catalogação, embora, lógico, imprecisa e simplista. Elas mesmo cada hora eram uma das duas coisas. Sobretudo, era sempre tardia quanto a relacionamentos.
- Cara, que ano. É só abril e já deu tanta coisa errado para gente.
- Né? Começou tão simpático, aquela noite boa lá em casa. Dá pra voltar e começar de novo?
- Não dá. Mesmo porque ia ter que passar de novo a virada com o Beto e agora eu que não estou afim.
- Então dá pra gente adiantar pra dezembro logo? Um ano novo caia bem agora.
As duas suspiraram, cansadas.
- Ah, a gente faz um.
Fez um muxoxo, descrente. Ela insistiu:
- Não, sério, hoje é 30 de abril. A gente começa outro ano amanhã em maio.
Animou-se:
- Pode ter réveillon? Não te­­­m graça ano novo sem réveillon.
- Claro. A gente vai ao cinema e depois vai para praia pular 7 ondas.  Amanhã é feriado. Igual 1º de janeiro. Dá pra dormir até tarde e almoçar celebrando os direitos do trabalhador e a paz universal.
- Acho que vou passar de azul. Quero serenidade.
- Eu passo de qualquer coisa, menos vermelho.
- Podíamos comprar um champanhe.
- Acho que tem um lá em casa que o Beto deixou. Era pra defesa da tese dele.
- Mas não vai te lembrar no Beto?
- Não. Nosso eterno trabalho de ressiginificar. Vai me lembrar nosso primeiro réveillon particular.
Riram.
- Maio novo, então?
- Maio novo.
Ergueram as xícaras e disseram ao mesmgo tempo:
- Feliz maio novo!
Agora já gargalhavam. E brindaram, entre vivas e se abraçando, para espanto da cafeteria.
Voltaram a sentar trocando olhares cúmplices. Acabavam de assassinar uma continuidade. Vinham de cometer uma inovação. Possuíam agora um ano novo particular. Recomeçariam escancaradamente, enquanto os outros calendários esperavam, exaustos, dezembro. Saíram conversando sem repararem que ainda garoava.
Um pouco embriagas de café e chuva. Um pouco inebriadas por esse afeto tão sincero e calmo que atende pelo nome de amizade.
Ela olhou para baixo, e viu que o chão não estava longe. Não, Coiote, não precisa cair. Tem um pedaço de chão aqui do seu lado, caminhando na chuva.
Amanhã era maio. Sempre era novo. E iam juntas. 


quinta-feira, 23 de abril de 2015

Da minha banca de jornal, vejo o mundo

Gosto de bancas de jornal. Parecem-me pequenas ilhas de letra nos cotidianos tão falados, na cidade tão imagética. Discordando de Bandeira, às vezes a vida me chega pelos jornais, pelas manchetes, pelas palavras coloridas das revistas.
Por isso, aproveitando a calma do feriado para visitar uma amiga, sem hora marcada para chegada, sem correria para alcançar o ônibus, parei em frente a uma banca para apreciar o mundo sob aquela óptica, enquanto tomava um sol de outono carioca bem a calhar.(Claro que, para manter a magia, tenho que desviar discretamente da parede de revista de mulheres semi-nuas que toda banca que se preza precisa ter. Sempre me pergunto se algum policial teria coragem de prender uma mulher por "atentato violento ao pudor" se ela fizesse topless em solidariedade a todos aqueles seios livremente expostos.)

Mas todo meu bucolismo de leitura de manchetes se desfez com a seguinte inacreditável junção de vocábulos:


“VAGABUNDA, SÓ TE PEGO PARA VOCÊ LEMBRAR QUE AINDA É GENTE”
Personagem 1 e Personagem 2 se apaixonam.

Li, reli, trili, sim, era isso mesmo. Um personagem tal em alguma novela que não sei identificar tinha dito para uma mulher que somente o fato de ele “pegar” ela era o que a transformava em uma pessoa. E para alguém, em algum universo paralelo ao meu, isso significava que eles se apaixonavam. Ah, claro, como não amar o ser maravilhoso que me concede meu status de “gente”? Ele, tão incrível e condescendente, saiu do pedestal inalcançável de homem dele para vir aqui e me permitir existir um pouquinho. Claro, só se relacionada a ele, mas fora isso também já era querer muito. Vamos lá, meninas, quem não se apaixonaria?
Sigo minha leitura de manchetes, já achando menos graça no sol carioca e no feriado, quando vejo, ali, a uma coluna de revistas de distância, outra manchete, menos incrível, porque terrivelmente constante:

MORTA A PAULADAS FOI ASSASSINADA E ENTERRADA PELO MARIDO
Filhos denunciaram agressões constantes do pai.

Dei um passo atrás para poder observar a cena de ambas manchetes lado a lado. Pensei em tantos interlocutores que já me disseram que relacionar uma “frase pontual” ou uma “piadinha boba” com violência e assassinato era exagero. Será que eles também conseguiriam negar ali, uma do lado da outra?
Vamos gente, não preciso nem de falar em filosofia da linguagem aqui, o raciocínio é dolorosamente simplista:

1)                     Aprendi a vida inteira que sou eu, homem, que legitimo a existência dessa mulher.
2)                     Eu estou com uma companheira, eu concedo existência à ela.
3)                     Eu TENHO uma mulher. É MINHA.
4)                     Ela fez algo que não gostei.
5)                     Se eu que “fiz ela ser gente”, também é meu “direito” que não seja mais.

Enquanto afirmarmos para os homens que toda existência de suas companheiras deles depende, a eles pertence, não podemos nos assustar que diariamente surjam casos de assassinato e violência por motivos banais. Enquanto afirmamos para as mulheres que elas precisam estar em um relacionamento para serem legitimadas socialmente, que “mulher não deve ficar sozinha”, não podemos nos assustar que as mulheres se resignem à situações de violência continuada e extrema.
Não adianta querer mudar uma manchete sem repensar a outra. A banca de jornal, em seu exato microcosmo, não permite. 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

“Mas para que tanto adjetivo?” – pergunta, confuso, o sujeito universal

Amigos vieram me perguntar, afinal, o porquê de tudo agora precisar de adjetivos. Tudo que eles tinham sido por uma vida inteira, sem nenhum problema, sem nenhuma questão, agora precisava de uma identificação? É recurso estilístico? É só encheção?

Ah, suspiro quase rindo, se os adjetivos fossem só de agora, era outra discussão.

Mas tudo que escapava a um específico padrão sempre teve seu nome bem definido. Para haver um “neutro” sempre houve um curiosamente populoso contingente da “exceção”.

Ou agora negro não é adjetivo, só porque é estranho ser chamado de brancão? Incomoda ouvir “tenho até um amigo hétero” para quem sempre disse gay e sapatão?  Precisa especificar que é trans ou travesti, mas ter que sempre lembrar que eu sou cis, aí já é apelação?

(sem falar nesse tal de “ser mulher”, que a gente fica tentando a beça entender o que é, mas perguntar o que é “ser homem”, isso é universal, precisa não)

Só por terem colocado esse problema, preciso dizer que eram amigos-homens-cis-brancos-héteros?

Só o sujeito universal se espanta tanto com essa tal adjetivação.

Nós, os relativos de toda sorte, temos uns bons séculos de prática.

Só que agora também aprendemos a adjetivar. E a ressignificar.  

Eu sei, sujeito universal, incomoda.

Mas você vai se acostumar.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Carta a um querido colunista imparcial e desinteressado

Querido Colunista Imparcial Liberal Sem Medo de Polêmica,

Que alívio ver aqui registrada essa carta! É um sopro de ar em nossas angústias diárias desde que nosso filho foi para Universidade.  Andávamos preocupados.  

Sabe, sempre criamos o menino dentro do melhor dos tradicionais valores da família brasileira, sempre pagamos tudo que ele queria e ensinamos que quem não tem tudo isso é porque não trabalhou o suficiente. Era um garoto tão bom, queria fazer Direito para trabalhar no escritório do pai, tudo como sempre sonhamos. Até, veja só, entrar realmente para Universidade.

Pegamos a grade de horário deles e já nos preocupamos: Filosofia? Sociologia? Antropologia? Sei não, heim, tudo que termina com –ia, sabemos bem, rima com Ideologia. Mas nos tranquilizaram, ele leria uns textos gregos, talvez até uns do século XIX, mas ninguém ia fingir que aquilo se relacionava com nosso mundo atual. De resto, estava tudo bem. A quantidade de cursos de processo nos aliviava os corações aflitos.

Mas aí começaram a acontecer coisas estranhas. Ele começou a ir em umas reuniões, parece que eles chamam elas de palestras, onde pessoas que pensam coisas das quais sempre discordamos falam. Veja só: FALAM! Em um microfone. E nosso filho tem que escutar! Escutar opiniões estranhas de gente que nós (você, e todo mundo que está dentro do nosso quadrado) já sabemos que está errada desde sempre e para sempre. Por que deixar falar? Liberdade de expressão sim, mas só pros humoristas e deputados, né?

Se ainda fosse um debate de verdade, se chamassem para essas, como eles chamam “palestras”, gente como a gente, que sabe o que é certo e errado, aí tudo bem. Nós dois sabemos bem que nesse tipo de conversa a gente não ouviria nada que eles diriam e gritaríamos no final o que sempre achamos. Mas isso não é um conceito de debate produtivo? Muito melhor que escutar os argumentos de alguém e depois refletir sobre eles.

 Quando nosso filho começou a fazer Sociologia nós, que já estávamos com a pulga atrás da orelha, nos desesperamos. Ao invés de só textos da fundação da disciplina ou hermeticamente incompreensíveis para uma prova de decoreba, a professora resolveu discutir a situação social do Brasil. Na matéria em que se vai falar das relações entre sociedade e justiça, ela me faz isso. Na matéria que prevê na ementa a relação entre a lei e a sociedade ela leva as crianças para ouvir gente do, como é que eles chamam isso, “movimentos sociais”. Incompreensível que se leve os meninos para ouvir esses movimentos que propõe reformas legislativas e essas coisas ao invés de uma aula padrão sobre mudanças legislativas em abstrato.

Para piorar, ainda abriram, nessas tais de palestras, espaço para pergunta no final. Só para fingir que estão tentando pensar juntos, debater ideias. Como se isso lá fosse espaço para realmente conversar. Todos sabem que debate produtivo só se faz com cartas anônimas e no facebook. 

É mesmo o cúmulo!

Não, a gente manda esse menino para faculdade para assistir aulas decentes e aprender a reproduzir os dispositivos legais (que podem mudar com as alterações legislativas), a saber citar a jurisprudência que interesse no caso, falar com vocabulário rebuscado para ser chamado de doutor, essas coisas.

Não para ouvir ideias diferentes, para ser colocado em outros diálogos, para que lhe sejam apresentadas outras visões de mundo. Achamos que ele está começando a... temos até medo de dizer.

Achamos que ele está começando a pensar.

Obrigada pelo espaço totalmente desinteressado,


Casal de Bem


(Carta em total apoio irônico e imparcial à http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/educacao/doutrinacao-ideologica-na-puc-rio-professora-troca-aula-por-monologo-de-feministas-e-mst/)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Guerra de cotovelos no ônibus de meia noite – ou aprendendo a me desencolher

Estava tão transcendente a meditação nas montanhas natais, que resolvi aproveitar até a última hora possível  o feriado & tentar escapar do trânsito da descida para essas paragens costeiras pegando o ônibus de meia-noite. A brilhante ideia era das mais óbvias: adormecer em Minas e acordar em terras cariocas às 6 da manhã, tomar um banho e começar a rotineira segunda-feira, como já tanto fiz em outras épocas dessas minhas travessias.
Vã esperança.
Quando saiu o ônibus de minha cidade, já ia quase cheio, mas ao meu lado ninguém havia. Tive mesmo uma ilusão de que na próxima parada, na cidade vizinha, entrasse um amigo querido com quem tenho um trato eterno de poltronas de ônibus. Sabendo ele que, sempre que posso, compro a 13 – número da sorte, começou a comprar a 14, para, quando o universo estiver de acordo e o acaso nos der sorte, seguirmos proseando serra abaixo ou serra acima.
Passando da cidade dele, perdida a esperança de perder o sono com conversa e colo amigos, e seguindo vazio o lugar ao lado, comecei a acalentar expectativas de que tivesse meu desconhecido parceiro de assento perdido o ônibus ou desistido da viagem, resolvido que melhor era seguir em Minas, que o Rio tem andado por demais estranho. E, assim, ganhava eu lugar para me espalhar, feliz, na preparação físico-psicológica que sempre precede essa volta.
Mas qual o quê! Já na terceira cidade (pois, pra quem não está familiarizado, se um ônibus não parar em ao menos 4 cidades no caminho não se pode considerar que saiu de Minas) chegou meu companheiro de banco, acabando com os devaneios de uma quase-cama. Resignada, ajeitei-me no pedaço de ônibus que me cabia e apressei-me a cair nos braços de Morfeu, que minha segunda-feira me esperava, ansiosa, na rodoviária.
No entanto, algo como 40 minutos depois, acordei, dolorida, em uma relação de amor muito séria com a janela, a ela quase me fundindo em paixão. Naquela confusão que antecede e prossegue o sono, indaguei-me que fazia eu da janela tão próxima, vez que tendências suicidas nunca foram meu forte, e se um dia chegarem pretendo ser mais dramática e poética nos métodos. Efetivamente despertando, vi que meu companheiro de viagem, em seu adormecimento, tinha se expandido para bem além dos limites de seu assento, pernas e braços abertos (eu já tinha dito que era um homem?). Provavelmente, então, fora eu recuando ao que ele se aproximava, ambos inconscientes, até o recuo não ser mais possível pelas leis da física, e eu ter acordado.
Acreditei – ah, eu e minha fé na humanidade – que era só delicadamente empurrá-lo de volta que tudo estaria resolvido. Se acordasse ficaria o viajante mesmo sem graça de ter assim incomodado sua desconhecida parceira de estradas. Com cuidado, reestabeleci nossos limites espaciais, afastando sua perna do exíguo espaço que tinha para as minhas, mesmo tendo a atenção de deixar um pedaço da divisória para cada um dos cotovelos. Que todos viajassem e dormissem contentes, que a segunda ali já vinha.
Ajeite-me, tranquila, e rapidamente adormeci, conseguindo mesmo encontrar o rastro de um sonho que antes já começara. Mas mal me aprofundava nestas aventuras oníricas, novamente acordei rendida à janela por um cotovelo militarmente apontado e pernas escancaradas (aliás, eu já tinha dito que era um homem?) do meu folgado meeiro de poltrona.
Dessa vez já irritada, afastei-o com algum alarde. Ah, que visse como andava a incomodar sua pacata vizinha, que tratasse de fechar as pernas e recolher seus cotovelos ao trecho da divisória que legitimamente lhe pertencia, que precisava eu dormir o sono dos justos (embora essa expressão sempre me incomode, que se tomada ao pé da letra seríamos mesmo um mundo de insones).  Pois que quando meu distinto vizinho acorda, aturdido pelos empurrões que nem tão forte foram, ao invés de balbuciar desculpas, ensejar um fechar de pernas, mudar a posição dos braços, ao contrário, olhou-me repressor, como que me pegasse em flagra de pequeno delito, rearrumou o braço de modo a expulsar meu cotovelo de qualquer nesga de espaço e abriu orgulhosamente as pernas (eu já cheguei a comentar que era um homem?) de modo a ficar uma quase no corredor e a outra a me fechar tanto que se não cruzasse eu as minhas não haveria espaço para elas. Mirou-me novamente, como a recomendar “não me venha fazer travessuras de novo” e adormeceu.
Fiquei eu, com um sentimento confuso de revolta e vontade de pedir-lhe infinitas desculpas pelo fato de ter incomodado minimamente seu precioso sono, encolhida no canto da janela, dosando a respiração para que não o tocasse por acaso. As pernas me incomodavam, um pouco inchadas e assim cruzadas. Encarando nossas pernas, as dele tão relaxadamente abertas, as minhas recatada e tensamente fechadas, é que me dei conta do que estava por trás do absurdo da situação. O espaço era dele, as pernas dele precisam estar abertas, a demanda dele define o espaço de cada um. O espaço público é dele, sempre. O meu, se eu o tivesse, seria em outro lugar que não esse, segundo me informam as propagandas, aparentemente continuo sendo rainha da cozinha se me apetecer. Agora viajando de madrugada, cruze as pernas e deixe lugar para quem é de direito. Eu já disse que era um homem?
Não tive dúvida, novamente afastei-lhe a perna e abri com o cotovelo espaço para me apoiar, fazendo questão de que ele acordasse com o movimento para que soubesse que não! eu não compactuava mais com esse diaxo de mentalidade que ensinara ele a colocar-se como quisesse e onde quisesse e a mim a retirar-me, contrair-me. Desencolhi-me com gestos que me pareceram de libertação. É minha metade de banco de ônibus! É minha possibilidade de ser um corpo tão necessitado de espaço quanto outro qualquer. 
Ao sentir seu cotovelo restrito à metade da pequena divisória, insistiu ele novamente contra o meu. Não arredei dali, colocando o cotovelo como ponta de lança de tantas batalhas e reinvenções que tenho me esforçado por travar, desencolhendo os braços com a força de quem anda tentando desencolher as ideias e as perspectivas, a voz.
Senti ele aos poucos tirar o impulso do braço, mas sem com isso recolhê-lo ao tanto que lhe caberia. Seguia encostando no meu, mas sem mais disputar o lugar. Demorei ainda alguns segundos para entender a nova relação travada, quando enfim percebi que seu braço não mais empurrava o meu, mas sim o roçava. Virei-me, estupefata, e vi em seu rosto não mais raiva, mas um olhar levemente sedutor, no tanto que se pode julgar sedutor um ser recém acordado no meio da estrada.
Ah, mas claro. Às 3h da manhã, exausta, no meio da BR, tudo que eu podia pensar era em acordar um desconhecido adormecido para um leve flerte viagem adentro. Sabem como é, não estávamos fazendo nada por ali. Em que espécie de mundo alguém primeiro pensa “Uhm, ela tá usando essa situação pra me dar mole” e não “Opa, estou enfiando o cotovelo nela há duas horas!”? Há de ser uma certeza realmente enorme de que aquele espaço só a ele pertencia e eu mais não podia ser que um braço que o dele procura.
Como momentos de ódio por vezes, e com alguma sorte, nos trazem também uma iluminação, peguei minhas duas bolsas que iam ao pé e criei entre nós uma barricada. Ele suspirou, não compreendendo o que tudo aquilo queria dizer, mas virou de lado e voltou a adormecer, agora à sua metade restrito.
Gastei ainda alguns momentos olhando a estrada antes de poder também dormir.
Invadiram-me dois cansaços infindos. Um, o físico, de saber que já era noite alta, quase Rio, que eu não recuperaria aqueles acordares-dormires e que teria dia longo em semana de provas para enfrentar. Outro, o mental, de tudo ter sempre de ser assim tão batalhado, desse desencolher-se ter que ser sempre contra alguém que cisma adentrar e dominar meu espaço. Pensei em tudo que se fala sobre o feminismo e, em minha pobre metáfora de ônibus de madrugada, quase disse: moço, eu não quero seu espaço, eu não quero seu banco, eu não quero nada além de poder andar desencolhida, de poder movimentar-me livremente na metade que me cabe, de poder, como você, apoiar meu cotovelo. 
Dormi, enfim, o resto do tempo que podia. Cheguei ao Rio mais cansada e torta do que previa.


Mas ainda mais ciente dessa missão diária e constante de me desencolher sempre.  



domingo, 5 de abril de 2015

Passagem

Às vezes a procura de um solo é simplesmente a procura de um colo. 

Por quantos caminhos anda um abraço até ser dado, não nos cabe saber. Cerra-se somente a vista para que o momento não lhe transborde.

Escuta, há que o quê só se vê de olhos fechados.

Quantos passos dei para poder cruzar essa soleira só se compara a imensidão de instantes que custaste a construí-la. Toda a marcha incansável dos de rumo trocado. Toda espera incerta dos que partiram sem dar por isso. Imensuráveis e inúteis contagens. Está cá o passo. Aí estavam a soleira e a porta e a possibilidade da passagem. Imaginássemos que fosse tão frugal bater na porta e entrar e sentar ao sofá e tanto era evitado. Mas soubéssemos que era simples e já deixava de sê-lo, pois que a mente humana anda a perder os caminhos da trivialidade e despachar como desnecessárias suas obviedades; pior para ela que a ternura é mesmo insuportavelmente simples e rudimentarmente óbvia, como esse cruzar de porta e esse encontrar-te no sofá e poder enfim descansar a cabeça em teu colo, descansar os meses que já formavam anos e iam eles também cansados de somarem-se a si, vez que, não sei se sabes, mas o tempo também se fatiga quando passa assim contado estreito nas sentenças de “há tantos dias que não te abraço”. Vê, até o dia aqui se demorou na pronúncia para ver se lhe mudávamos os sentidos e os rumos.

Não falamos do que não fosse importante. Não de caminhos, que de caminhos não se fala, só se percorre. Nem de abraços. Abraços só são. No entanto, falamos desse cheiro de terra molhada que restou depois da chuva da hora do almoço.

À partida, só disseste “Não te peço que fiques pois que o tempo de permanências já é passado e ficar é sempre coisa grande e indeterminada, mas só que voltes, pois que já sabes não só o caminho, mas ao que ele leva e a inescapável naturalidade desse encontro quantas vezes teimemos em desencontrar.”

eu disse “Volto”, e foi verdadeiro, pois que o tempo de voltar está sempre ao alcance dos pés. 

E mais não, que para o simples não se carece gastar palavras. 

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Para mim é direito, para você... privilégio!

Três vezes por semana, pego o metrô pela manhã para o centro da cidade no “horário de pico”. Coloco “horário de pico” aqui entre aspas porque não creio que se possa dar o mesmo nome para os vagões levemente cheios no sentido Zona Sul-Centro e o ensardinhamento humano que acontece nos trens e ônibus cariocas. Talvez devêssemos mesmo pensar um novo nome, algo tipo “violação aos direitos humanos”, sei lá. Em uma das poucas vezes que encarei um trem desses, que desafiavam nitidamente as leis da física sobre quantos corpos ocupam um espaço ao mesmo tempo, lembro da nítida sensação de que minha cabeça e meu corpo tinham se separado, pois que a cabeça olhava em volta e não encontrava em que vão impossível tinha se escondido o corpo. Pode ser interessante para posteriores viagens filosóficas. Como realidade cotidiana da maior parte da população carioca, não consigo nem mais achar graça.

Nos metrôs do Rio, nesses horários de reconhecida insustentável superlotação dos transportes, foram criados os vagões das mulheres, como medida paliativa emergencial para os assédios diários vividos pelos corpos femininos em seus mais cotidianos deslocamentos. Não vou aqui entrar no mérito do próprio vagão rosa, minha opinião sobre ele já sofreu radicais mudanças, mas não tenho uma posição tomada, sigo pensando sobre.

Mas o quero contar é tanto mais superficial quanto, talvez, mais profundo. Estava eu sentada próxima à porta do tal vagão, dessa vez, nem por nenhum motivo a ele referente, mas tão somente por ser o que me deixa mais perto da minha saída da estação, lendo trechos ao azar do livro cujo marcador caíra na mochila e eu já não sabia onde tinha parado na véspera, quando ouço o guarda barrar a entrada de um homem. Com calma, ele explica:

- Pega o do lado, dá tempo, esse é das mulheres.

No que o homem replica ironicamente, demorando-se em cada palavra:

- Ah, essa sociedade dos privilégios.

Quando ouvi essa frase, dita com tanto sarcasmo, com tanta displicência, levantei a cabeça. Ali estava –claro-  um homem branco, porte médio, corpo dentro dos padrões esperados para seus algo como trinta anos, terno de corte caro, camisa social impecavelmente passada, para todos os efeitos, hetero, e com uma pasta de couro com cara de importante. Captando meu olhar, ele sorriu ironicamente, reforçando seu protesto por minha privilegiada condição de mulher dentro do vagão rosa.

Fiquei pensando na sofrida vida daquele homem-padrão-ocidental desprivilegiado. Ora vejam, nenhuma política afirmativa se destina a ele, ele só tem a seu favor todo sistema de educação particular que sua condição social lhe permite acesso. Nenhuma lei que o proteja contra agressões racistas e homofóbicas que ele jamais sofrerá, mas isso não importa. Nenhuma política pública que garanta sua integridade frente a abusos que ele sequer considera abusos (ah, por que você tá reclamando, foi só uma encoxada).

Mas, do que é que eu estou falando? Tudo isso eram seus direitos. Né?

Afinal, tudo que lhe foi garantido em certidão de nascimento, em termos implícitos, mas muito claros, quando foram escritos o sexo, a cor, a filiação, o lugar de nascimento. São seus direitos! Se for para os outros, aí sim é privilégio.

Porque, claro, estudar em escola particular a vida toda é direito, e cota é privilégio. Curso de inglês é direito. Ciência sem Fronteira pra-filho-de-pobre-que-ainda-vai-ter-que-aprender-o-idioma, isso é privilégio.  Pegar um metrô sem ser incomodado (se eu for assaltado: pena de morte, se era menor: redução da maioridade penal) é direito, mas vagão das mulheres é privilégio. Bater na mulher que não fez o que eu e a sociedade esperávamos dela é direito, Maria da Penha é privilégio.

E eu que vinha trocando os nomes por uma vida inteira!


Querido homem desconhecido do metrô de Ipanema, se quiser trocar seus direitos por esses (absurdos, claro!) privilégios, acho que terá gente a beça aceitando.