Três
vezes por semana, pego o metrô pela manhã para o centro da cidade no “horário
de pico”. Coloco “horário de pico” aqui entre aspas porque não creio que se
possa dar o mesmo nome para os vagões levemente cheios no sentido Zona
Sul-Centro e o ensardinhamento humano que acontece nos trens e ônibus cariocas.
Talvez devêssemos mesmo pensar um novo nome, algo tipo “violação aos direitos
humanos”, sei lá. Em uma das poucas vezes que encarei um trem desses, que
desafiavam nitidamente as leis da física sobre quantos corpos ocupam um espaço
ao mesmo tempo, lembro da nítida sensação de que minha cabeça e meu corpo
tinham se separado, pois que a cabeça olhava em volta e não encontrava em que
vão impossível tinha se escondido o corpo. Pode ser interessante para
posteriores viagens filosóficas. Como realidade cotidiana da maior parte da
população carioca, não consigo nem mais achar graça.
Nos
metrôs do Rio, nesses horários de reconhecida insustentável superlotação dos
transportes, foram criados os vagões das mulheres, como medida paliativa
emergencial para os assédios diários vividos pelos corpos femininos em seus
mais cotidianos deslocamentos. Não vou aqui entrar no mérito do próprio vagão
rosa, minha opinião sobre ele já sofreu radicais mudanças, mas não tenho uma
posição tomada, sigo pensando sobre.
Mas
o quero contar é tanto mais superficial quanto, talvez, mais profundo. Estava
eu sentada próxima à porta do tal vagão, dessa vez, nem por nenhum motivo a ele
referente, mas tão somente por ser o que me deixa mais perto da minha saída da
estação, lendo trechos ao azar do livro cujo marcador caíra na mochila e eu já
não sabia onde tinha parado na véspera, quando ouço o guarda barrar a entrada
de um homem. Com calma, ele explica:
-
Pega o do lado, dá tempo, esse é das mulheres.
No
que o homem replica ironicamente, demorando-se em cada palavra:
-
Ah, essa sociedade dos privilégios.
Quando
ouvi essa frase, dita com tanto sarcasmo, com tanta displicência, levantei a
cabeça. Ali estava –claro- um homem
branco, porte médio, corpo dentro dos padrões esperados para seus algo como trinta
anos, terno de corte caro, camisa social impecavelmente passada, para todos os
efeitos, hetero, e com uma pasta de couro com cara de importante. Captando meu
olhar, ele sorriu ironicamente, reforçando seu protesto por minha privilegiada
condição de mulher dentro do vagão rosa.
Fiquei
pensando na sofrida vida daquele homem-padrão-ocidental desprivilegiado. Ora
vejam, nenhuma política afirmativa se destina a ele, ele só tem a seu favor
todo sistema de educação particular que sua condição social lhe permite acesso.
Nenhuma lei que o proteja contra agressões racistas e homofóbicas que ele
jamais sofrerá, mas isso não importa. Nenhuma política pública que garanta sua
integridade frente a abusos que ele sequer considera abusos (ah, por que você
tá reclamando, foi só uma encoxada).
Mas,
do que é que eu estou falando? Tudo isso eram seus direitos. Né?
Afinal,
tudo que lhe foi garantido em certidão de nascimento, em termos implícitos, mas
muito claros, quando foram escritos o sexo, a cor, a filiação, o lugar de
nascimento. São seus direitos! Se for para os outros, aí sim é privilégio.
Porque,
claro, estudar em escola particular a vida toda é direito, e cota é privilégio.
Curso de inglês é direito. Ciência sem Fronteira pra-filho-de-pobre-que-ainda-vai-ter-que-aprender-o-idioma,
isso é privilégio. Pegar um metrô sem
ser incomodado (se eu for assaltado: pena de morte, se era menor: redução da maioridade
penal) é direito, mas vagão das mulheres é privilégio. Bater na mulher que não
fez o que eu e a sociedade esperávamos dela é direito, Maria da Penha é
privilégio.
E
eu que vinha trocando os nomes por uma vida inteira!
Querido
homem desconhecido do metrô de Ipanema, se quiser trocar seus direitos por esses
(absurdos, claro!) privilégios, acho que terá gente a beça aceitando.
Esses comentários de homens heteros cis brancos de classe média sempre são uma bosta (sou a favor de que, se você não tem nada útil a acrescentar é melhor ficar calado). Como tu disse, se for pra eles é direito mas se for pros outros é privilégio? A hipocrisia é demais! Não sei como você conseguiu ficar quieta ~se bem que, vai saber como um homem desse pode reagir.
ResponderExcluirBeijo.
http://compartilhando-historias.blogspot.com.br/
Nunca se sabe como vai reagir. Isso se realmente ouvir o que a gente fala.
ExcluirMas não falei nada mais porque, normalmente, a melhor resposta só me chega uns 10 minutos depois.
Tenho tentado reduzir o delay, porque, seja como for, temos que ir espalhando nossas vozes.
Beijo!
Obrigada pelo comentário!