quarta-feira, 1 de abril de 2015

Para mim é direito, para você... privilégio!

Três vezes por semana, pego o metrô pela manhã para o centro da cidade no “horário de pico”. Coloco “horário de pico” aqui entre aspas porque não creio que se possa dar o mesmo nome para os vagões levemente cheios no sentido Zona Sul-Centro e o ensardinhamento humano que acontece nos trens e ônibus cariocas. Talvez devêssemos mesmo pensar um novo nome, algo tipo “violação aos direitos humanos”, sei lá. Em uma das poucas vezes que encarei um trem desses, que desafiavam nitidamente as leis da física sobre quantos corpos ocupam um espaço ao mesmo tempo, lembro da nítida sensação de que minha cabeça e meu corpo tinham se separado, pois que a cabeça olhava em volta e não encontrava em que vão impossível tinha se escondido o corpo. Pode ser interessante para posteriores viagens filosóficas. Como realidade cotidiana da maior parte da população carioca, não consigo nem mais achar graça.

Nos metrôs do Rio, nesses horários de reconhecida insustentável superlotação dos transportes, foram criados os vagões das mulheres, como medida paliativa emergencial para os assédios diários vividos pelos corpos femininos em seus mais cotidianos deslocamentos. Não vou aqui entrar no mérito do próprio vagão rosa, minha opinião sobre ele já sofreu radicais mudanças, mas não tenho uma posição tomada, sigo pensando sobre.

Mas o quero contar é tanto mais superficial quanto, talvez, mais profundo. Estava eu sentada próxima à porta do tal vagão, dessa vez, nem por nenhum motivo a ele referente, mas tão somente por ser o que me deixa mais perto da minha saída da estação, lendo trechos ao azar do livro cujo marcador caíra na mochila e eu já não sabia onde tinha parado na véspera, quando ouço o guarda barrar a entrada de um homem. Com calma, ele explica:

- Pega o do lado, dá tempo, esse é das mulheres.

No que o homem replica ironicamente, demorando-se em cada palavra:

- Ah, essa sociedade dos privilégios.

Quando ouvi essa frase, dita com tanto sarcasmo, com tanta displicência, levantei a cabeça. Ali estava –claro-  um homem branco, porte médio, corpo dentro dos padrões esperados para seus algo como trinta anos, terno de corte caro, camisa social impecavelmente passada, para todos os efeitos, hetero, e com uma pasta de couro com cara de importante. Captando meu olhar, ele sorriu ironicamente, reforçando seu protesto por minha privilegiada condição de mulher dentro do vagão rosa.

Fiquei pensando na sofrida vida daquele homem-padrão-ocidental desprivilegiado. Ora vejam, nenhuma política afirmativa se destina a ele, ele só tem a seu favor todo sistema de educação particular que sua condição social lhe permite acesso. Nenhuma lei que o proteja contra agressões racistas e homofóbicas que ele jamais sofrerá, mas isso não importa. Nenhuma política pública que garanta sua integridade frente a abusos que ele sequer considera abusos (ah, por que você tá reclamando, foi só uma encoxada).

Mas, do que é que eu estou falando? Tudo isso eram seus direitos. Né?

Afinal, tudo que lhe foi garantido em certidão de nascimento, em termos implícitos, mas muito claros, quando foram escritos o sexo, a cor, a filiação, o lugar de nascimento. São seus direitos! Se for para os outros, aí sim é privilégio.

Porque, claro, estudar em escola particular a vida toda é direito, e cota é privilégio. Curso de inglês é direito. Ciência sem Fronteira pra-filho-de-pobre-que-ainda-vai-ter-que-aprender-o-idioma, isso é privilégio.  Pegar um metrô sem ser incomodado (se eu for assaltado: pena de morte, se era menor: redução da maioridade penal) é direito, mas vagão das mulheres é privilégio. Bater na mulher que não fez o que eu e a sociedade esperávamos dela é direito, Maria da Penha é privilégio.

E eu que vinha trocando os nomes por uma vida inteira!


Querido homem desconhecido do metrô de Ipanema, se quiser trocar seus direitos por esses (absurdos, claro!) privilégios, acho que terá gente a beça aceitando. 



2 comentários:

  1. Esses comentários de homens heteros cis brancos de classe média sempre são uma bosta (sou a favor de que, se você não tem nada útil a acrescentar é melhor ficar calado). Como tu disse, se for pra eles é direito mas se for pros outros é privilégio? A hipocrisia é demais! Não sei como você conseguiu ficar quieta ~se bem que, vai saber como um homem desse pode reagir.
    Beijo.

    http://compartilhando-historias.blogspot.com.br/

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    1. Nunca se sabe como vai reagir. Isso se realmente ouvir o que a gente fala.
      Mas não falei nada mais porque, normalmente, a melhor resposta só me chega uns 10 minutos depois.
      Tenho tentado reduzir o delay, porque, seja como for, temos que ir espalhando nossas vozes.
      Beijo!
      Obrigada pelo comentário!

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