quarta-feira, 24 de junho de 2015

O feminista misógino, o Bolsonaro e outros seres mitológicos (ou porque não aguento mais falar sobre homens no feminismo)

Há cerca de duas semanas conheci um novo e imprevisto ser para minha mitologia pessoal: o ~feminista~ misógino. Era um estudante de esquerda que reconhecia plenamente as opressões históricas contra a mulher – poxa, muito obrigada – e já tinha lido toda teoria que normalmente citada sobre o tema e também aquela muito além do que eu-reles-mortal possa sonhar que exista. Justamente, eu, reles mortal, deveria ler mais (isso eu sempre concordo, mas por outros motivos e em outros termos) porque “vocês, mulheres, não entenderam que o importante é...e o problema, de fato, é que “as mulheres não conseguem se articular para...”, além do mais, “as mulheres são incapazes de compreender que...” e... opa, peraí, o parágrafo não tinha começado falando de opressão?



Para além de compor a taxonomia sempre surpreendente da fauna e flora de gentes que encontro no mundo, propiciar-me uma tarde de discussão infrutífera e aumentar minha gastrite, o catalogar desse novo personagem fez-me pensar ainda mais na incansável (e cansativa) polêmica dos homens dentro do feminismo.
Cansativa, aliás, é pouco. Particularmente, ando me sentindo cercada. Tanto que relutei incrivelmente sobre escrever esse post – mais um no mar da internet – sobre o assunto!
Não tem uma conversa sobre feminismo que eu tenha tido nos últimos tempos que não tenha gastado muito (muito!) tempo discutindo justamente, veja só, homens.
 Da mesa de bar com as amigas aos grupos de whatsapp de coletivos de mulheres, das reuniões políticas às discussões acadêmicas, isso sem falar em todos os posts das principais páginas que acompanho. É como se mesmo para defendermos nosso protagonismo tivéssemos que abrir mão dele. Angustiante.
Por isso, mesmo relutante, resolvi escrever, aceitando o paradoxo de decidir falar sobre algo porque não aguento mais falar sobre isso. Pelo lançamento da campanha ElesporElas no Brasil – mais discussões. Pelo tal do feminista misógino. E também por causa do Bolsonaro. Do Bolsonaro? Sim, do Bolsonaro. Uma das outras notícias que vi compartilhada à exaustão essa semana foi a do Bolsonaro (filho) propondo emenda para retirada dos coletivos de mulheres e coletivos LGBTTs da Comissão Municipal da Mulher. Segundo o moço, assim ele estaria defendendo a “verdadeira mulher”. Pois é, gente, mais alguém querendo contar para a gente que existe e quem é a “verdadeira mulher”. Um homem. E o Bolsonaro.
Confesso que nunca tinha visto grande problema em dizer que um homem era feminista. Para mim era tão óbvio que o protagonismo dessa luta era, tinha que ser, só podia ser, das mulheres (cis, trans, negras, brancas, bi, hetero, homo) que nomear um homem como feminista só me dizia que ele era um homem que 1) reconhecia a dominação patriarcal e 2) ficaria atento para não a reproduzir 3) atuaria em todos os espaços em que é privilegiado para conscientizar seus pares e desconstruir seus privilégios.
Começou a me incomodar um pouco ano passado, com o discurso da Emma Watson, o famoso. Ainda intuitivamente, deu uma decepçãozinha de pensar que, poxa, minha personagem de infância estava na ONU para falar de feminismo e... ela estava indo lá falar sobre homens. E aí, de repente, mil pessoas que nunca tinham me ouvido quando eu falava de feminismo, amigas e amigos que nunca tinham dado a menor bola pra minhas angústias e minhas inquietações estavam falando sobre isso e... estavam falando sobre homens. A pulga ficou atrás da orelha. Coçando.
Mas se parasse por aí, ainda poderíamos, talvez, negociar.
Mas não para. Nunca para, né, gente.
Fui notando que vários homens em torno, legitimados pelo tal discurso, passavam de apoiadores das causas a críticos delas por “não terem o espaço deles” (?! acho que não entenderam a parte do usar seus espaços para desconstruir o machismo). E o “atuar nos seus espaços de privilégio” acaba virando desculpa para um certo “olha, não se preocupa se a luta pela representatividade política das mulheres não for vitoriosa por agora, tem uns homens feministas aqui, eles vão defendendo o direito de vocês até – ah, até algum dia”. Culmina no meu recém conhecido feminista misógino: “olha, já que você é burra e fraca, deixa que eu vou lá e acabo com essa cultura que acha que as mulheres são burras e fracas”


Se antes eu pensava na possibilidade do homem feminista tendo em mente meu amigo que – entendendo e estudando comigo questões de representatividade e protagonismo – sabe que não pode ir a um coletivo de mulheres e se cala quando eu discuto sobre machismo com um homem na presença dele, pois sabe que é importante que eu o faça (mas desconstrói “piadinhas” machistas na roda dos homens) percebi que o alcance político dessa categoria vai um pouco além. E é bem mais perigoso que eu pensava. As consequências estão aí, estão acontecendo, aqui e agora. Estamos gastando mais tempo falando de homens no feminismo do que das nossas pautas mais caras e importantes. Estamos debatendo internamente antes o lugar do homem no feminismo do que a – ainda – falta de representatividade das pautas trans (para ficar só no caso mais grave dessa carência). Estamos perdendo tempo, fôlego e energia em discussões entre mulheres sobre se os homens podem ou não ser feministas, enquanto ~cereja do bolo~ surge o Bolsonaro dizendo o que é uma “mulher de verdade” a ser defendida pela política pública da cidade do Rio de Janeiro.
Eu sei que não era no Bolsonaro que a Emma Watson estava pensando. Nem a ONU Mulheres. Nem ninguém em sã consciência. Espero que nem o próprio Bolsonaro se pense incluído nesse discurso. Mas, se a gente diz que os homens podem assumir frente de pautas feministas, e o Bolsonaro resolve que vai se arvorar como defensor dos direitos da “mulher de verdade”, como a gente vai explicar para ele que não é assim que funciona? Como a gente vai explicar que não era nele que a gente estava pensando e que isso aí de “mulher de verdade” ele cante no samba, se não puder evitar, e não acredite que existe - de jeito nenhum?

O feminismo atual, quando colocado assim no singular, já tem problemas suficientes de racismos, homofobias, transfobias internos para ainda correr esse risco . Os feminismos atuais, no plural, única forma como os acredito, já tem pautas e desafios suficientes para perder tanta energia em debates internos sobre, justamente, protagonismo masculino.

Isso não é ser contra homens. Não é segregacionista ou separatista. 

É só lembrar que, gente, nos feminismos, não era para a gente estar preocupado com as mulheres?








(Mesmo porque, como sempre converso com meu amigo que – mesmo que eu não o chame mais de feminista – segue sensibilizado para as questões de gênero, atuante em seus espaços de privilégio e ótimo interlocutor pra todas essas confusões da vida: um homem que realmente entendeu algo sobre as opressões e os feminismos, ah, não precisa ser chamado de feminista para fazer nada. Não reivindica um papel, porque sabe que tem muitos que nos são negados. Ele não vai ficar nem tentando explicar às mulheres –tolinhas -  como se faz. Vai fazer tudo que puder. Nos espaços dele. Convenhamos, espaço não é o que lhe falta.) 

sábado, 13 de junho de 2015

Cadê a Nélida que devia estar aqui? - nossas autoras em nossas estantes

Ontem fui à livraria trocar um presente que ganhei de aniversário.
Aproveitava a tarde agradável depois de uma semana particularmente corrida.

É que a ida a livrarias, esse mero cruzar de suas soleiras e o flanar por entre as estantes costuma ser, para mim, um delicioso ritual a ser degustado. Como chegar em uma festa e encontrar vários rostos conhecidos e queridos. Alguns desconhecidos, mas de aparência sumamente interessante. Daí abraço uns, aceno a outros, pego-me de conversa com um que só conhecia de vista, mas que me encanta no espaço de algumas páginas.
Foi, então, na melhor disposição literária e de espírito que entrei na loja. Pensava, depois de meus flertes habituais e- quem sabe – uma nova paixão livresca, trocar o presente (que era um livro que já tinha) pelo “Livro das Horas” da Nélida Piñon. Já havia lido trechos, gosto demais dela, queria tê-la mais perto de mim, na estante cotidiana. Mas não o encontrei por entre os títulos de literatura brasileira. A bem dizer, não encontrei nenhum livro da Nélida. Estranhei. É uma autora conhecida, com algumas-muitas publicações. A livraria era grande, repleta de clássicos e novidades literárias. Resolvi perguntar. O simpático vendedor me responde.
- Temos, claro. Está aqui embaixo.
Eu realmente não tinha olhado nas prateleiras abaixo da bancada, ao nível dos pés, pois acreditava que, normalmente, elas só tinham coleções inteiras. Abaixei-me e achei Nélida. Mas, curiosa por natureza e ainda mais quando se tratam de livros, fui passear os olhos pelas lombadas vizinhas. Estavam lá velhas conhecidas: Ana Maria Machado, Lya Luft, Ligia Fagundes Telles, Zélia Gattai. Não eram coleções, eram livros esparsos de cada uma dessas autoras. Sim, só mulheres.
Levantei-me novamente, ainda descrente da observação, e encarei a estante alta e imponente, em ordem alfabética de sobrenomes. Havia autoras. A inescapável Clarice. Sylvia Plath, supreendentemente. Não muitas outras. Estavam lá, claro, todos os Guimarães e Gracilianos, Rubens Bragas e Fonsecas, Chico Buarque e Marcelo Rubens Paiva, Caio Fernando Abreu e todos os autores famosos brasileiros que me ocorreram procurar. AutorES. As autoras pareciam vazios inexplicáveis na estante abarrotada. Depois do Paiva, não viria uma Piñon?
Não, péra, para de reclamar, leitora desatenta. Elas estavam ali. Ali embaixo. Porque, afinal, provavelmente seria pedir muito pedir que as tivéssemos à altura dos olhos.
Percorri superficialmente outras estantes, com aquela angústia indizível de quem enfim vê. Na literatura estrangeira, igualmente, uma diferença gritante entre homens e mulheres. Em poesia idem. Onde estava Elisa Lucinda? Nenhuma Adélia Prado? Ao menos um da Viviane Mosé e um da Thereza Cristina Roque da Motta (poeta e querida amiga) para salvarem a situação. Milhares de Nerudas e nenhum Gabriela Mistral? Será que o Nobel de um homem vale mais que de uma mulher? O da mulher vem tipo com uma nota de rodapé – “Isso na verdade não quer dizer que a obra dela deva ser lida e divulgada, foi só uma piadinha nossa aqui na Suécia”?
Porque, para quem não sabe, Gabriela Mistral, poeta chilena que viveu na primeira metade do século XX (inclusive um tempo aqui em nossa terra brasilis) foi a primeira a ganhar o Nobel da Literatura na América Latina. Sim, quando digo primeira, não estou dizendo primeira mulher, estou dizendo primeira pessoa (só essa pequena sentença já dava uma hora de conversas regadas de Beuvoir), antes do seu conterrâneo Pablo, bem antes do colombiano García Marquez. Mas nós devemos achar que isso foi uma distraçãozinha do povo lá de Estolcomo, já que não a traduzimos, não a citamos, não a lembramos. (mas sem o Neruda, ó, céus, como falar de amor sem Neruda?)
Não, não quero falar mal de Neruda nem de seus poemas, pelos quais igualmente suspiro. Menos ainda de García Marquez, que todos sabem ser meu encantador de realidades favorito. Tampouco quero desmerecer a constância em toda e qualquer estante de Machados, Josés, Jorges e afins. Só que eles não podem estar lá sozinhos.  As mulheres escritoras não podem estar embaixo. Se Zélia e Jorge se escolheram mutuamente como companheiros de vida e letras, agora os separamos por cima e baixo, visível e invisível na prateleira?
Porque isso, travestida de uma vaga ideia (um cado obtusa) de excelência literária, tem tudo a ver com a desconsideração da mulher como ser pensante, como alguém que tem algo interessante a dizer. As mulheres são objetos dos olhares, são personagens das narrativas, são musas inspiradoras das odes.  Devem, por isso, deitar-se confortavelmente em um divã, fazer pose, e esperar que se diga tudo sobre elas.
Mas não são dignas de pegar a caneta. De terem suas vozes ouvidas e consideradas. Se falam, até é tolerado. Mas nunca o mesmo espaço. Nunca a mesma divulgação. Nunca, nem mesmo, a mesma leitura.
Se falam, diz-se “falam como mulheres”. Como se isso fosse evidente. Como se isso fosse um desvio da fala “neutra” do homem.
Lembro vivamente do dia que ouvi Isabel Allende na Flip. Uma das palestras mais impactantes e transformadoras que já vivi em minha vida. Questionada sobre as críticas que sofria por ser “muito romântica”, Isabel riu e perguntou.
- Você já leu “O Amor nos tempos do cólera”? Então me diz porque ninguém critica o Gabriel por isso? Porque não consigo pensar em um romance mais água com açúcar. Ah, sim, porque ele é homem. Ele pode escrever o que quiser. O problema é que a mulher vai ser criticada pelo que quer que ela escreva.
O que me faz pensar em um poema do século XVIII que encontrei esses dias, que fala justamente sobre a dificuldade enfrentada pela mulher que quer escrever. Somos tão “igualitários” e tão “evoluídos” e “estamos cansados das feministas vendo problema em tudo”. Mas o poema segue atual.

Eu, de minha parte, seguirei reclamando. Quero chegar à livraria e, na festa dos livros conhecidos e ainda a serem lidos, ver elas, minhas autoras. Quero poder esbarrar com elas bem no meio da estante, ou – ainda – na bancada, em franco destaque. Quero ouvir o que elas têm a me dizer sem ter que ir procurá-las nos recantos. Quero-as na altura dos meus olhos. Quero poder ver-me nelas e que me vejam também elas.
Por isso, cada vez mais: ler mulheres, escrever sobre mulheres, declamar mulheres.
Por uma estante para também chamar de nossa.


Ps: Em tempo, reclamei com funcionários da livraria que, um pouco sem graça, explicaram algo sobre o rodízio de livros que não fez exatamente sentido, mas disseram que ficariam atentos.