sábado, 13 de junho de 2015

Cadê a Nélida que devia estar aqui? - nossas autoras em nossas estantes

Ontem fui à livraria trocar um presente que ganhei de aniversário.
Aproveitava a tarde agradável depois de uma semana particularmente corrida.

É que a ida a livrarias, esse mero cruzar de suas soleiras e o flanar por entre as estantes costuma ser, para mim, um delicioso ritual a ser degustado. Como chegar em uma festa e encontrar vários rostos conhecidos e queridos. Alguns desconhecidos, mas de aparência sumamente interessante. Daí abraço uns, aceno a outros, pego-me de conversa com um que só conhecia de vista, mas que me encanta no espaço de algumas páginas.
Foi, então, na melhor disposição literária e de espírito que entrei na loja. Pensava, depois de meus flertes habituais e- quem sabe – uma nova paixão livresca, trocar o presente (que era um livro que já tinha) pelo “Livro das Horas” da Nélida Piñon. Já havia lido trechos, gosto demais dela, queria tê-la mais perto de mim, na estante cotidiana. Mas não o encontrei por entre os títulos de literatura brasileira. A bem dizer, não encontrei nenhum livro da Nélida. Estranhei. É uma autora conhecida, com algumas-muitas publicações. A livraria era grande, repleta de clássicos e novidades literárias. Resolvi perguntar. O simpático vendedor me responde.
- Temos, claro. Está aqui embaixo.
Eu realmente não tinha olhado nas prateleiras abaixo da bancada, ao nível dos pés, pois acreditava que, normalmente, elas só tinham coleções inteiras. Abaixei-me e achei Nélida. Mas, curiosa por natureza e ainda mais quando se tratam de livros, fui passear os olhos pelas lombadas vizinhas. Estavam lá velhas conhecidas: Ana Maria Machado, Lya Luft, Ligia Fagundes Telles, Zélia Gattai. Não eram coleções, eram livros esparsos de cada uma dessas autoras. Sim, só mulheres.
Levantei-me novamente, ainda descrente da observação, e encarei a estante alta e imponente, em ordem alfabética de sobrenomes. Havia autoras. A inescapável Clarice. Sylvia Plath, supreendentemente. Não muitas outras. Estavam lá, claro, todos os Guimarães e Gracilianos, Rubens Bragas e Fonsecas, Chico Buarque e Marcelo Rubens Paiva, Caio Fernando Abreu e todos os autores famosos brasileiros que me ocorreram procurar. AutorES. As autoras pareciam vazios inexplicáveis na estante abarrotada. Depois do Paiva, não viria uma Piñon?
Não, péra, para de reclamar, leitora desatenta. Elas estavam ali. Ali embaixo. Porque, afinal, provavelmente seria pedir muito pedir que as tivéssemos à altura dos olhos.
Percorri superficialmente outras estantes, com aquela angústia indizível de quem enfim vê. Na literatura estrangeira, igualmente, uma diferença gritante entre homens e mulheres. Em poesia idem. Onde estava Elisa Lucinda? Nenhuma Adélia Prado? Ao menos um da Viviane Mosé e um da Thereza Cristina Roque da Motta (poeta e querida amiga) para salvarem a situação. Milhares de Nerudas e nenhum Gabriela Mistral? Será que o Nobel de um homem vale mais que de uma mulher? O da mulher vem tipo com uma nota de rodapé – “Isso na verdade não quer dizer que a obra dela deva ser lida e divulgada, foi só uma piadinha nossa aqui na Suécia”?
Porque, para quem não sabe, Gabriela Mistral, poeta chilena que viveu na primeira metade do século XX (inclusive um tempo aqui em nossa terra brasilis) foi a primeira a ganhar o Nobel da Literatura na América Latina. Sim, quando digo primeira, não estou dizendo primeira mulher, estou dizendo primeira pessoa (só essa pequena sentença já dava uma hora de conversas regadas de Beuvoir), antes do seu conterrâneo Pablo, bem antes do colombiano García Marquez. Mas nós devemos achar que isso foi uma distraçãozinha do povo lá de Estolcomo, já que não a traduzimos, não a citamos, não a lembramos. (mas sem o Neruda, ó, céus, como falar de amor sem Neruda?)
Não, não quero falar mal de Neruda nem de seus poemas, pelos quais igualmente suspiro. Menos ainda de García Marquez, que todos sabem ser meu encantador de realidades favorito. Tampouco quero desmerecer a constância em toda e qualquer estante de Machados, Josés, Jorges e afins. Só que eles não podem estar lá sozinhos.  As mulheres escritoras não podem estar embaixo. Se Zélia e Jorge se escolheram mutuamente como companheiros de vida e letras, agora os separamos por cima e baixo, visível e invisível na prateleira?
Porque isso, travestida de uma vaga ideia (um cado obtusa) de excelência literária, tem tudo a ver com a desconsideração da mulher como ser pensante, como alguém que tem algo interessante a dizer. As mulheres são objetos dos olhares, são personagens das narrativas, são musas inspiradoras das odes.  Devem, por isso, deitar-se confortavelmente em um divã, fazer pose, e esperar que se diga tudo sobre elas.
Mas não são dignas de pegar a caneta. De terem suas vozes ouvidas e consideradas. Se falam, até é tolerado. Mas nunca o mesmo espaço. Nunca a mesma divulgação. Nunca, nem mesmo, a mesma leitura.
Se falam, diz-se “falam como mulheres”. Como se isso fosse evidente. Como se isso fosse um desvio da fala “neutra” do homem.
Lembro vivamente do dia que ouvi Isabel Allende na Flip. Uma das palestras mais impactantes e transformadoras que já vivi em minha vida. Questionada sobre as críticas que sofria por ser “muito romântica”, Isabel riu e perguntou.
- Você já leu “O Amor nos tempos do cólera”? Então me diz porque ninguém critica o Gabriel por isso? Porque não consigo pensar em um romance mais água com açúcar. Ah, sim, porque ele é homem. Ele pode escrever o que quiser. O problema é que a mulher vai ser criticada pelo que quer que ela escreva.
O que me faz pensar em um poema do século XVIII que encontrei esses dias, que fala justamente sobre a dificuldade enfrentada pela mulher que quer escrever. Somos tão “igualitários” e tão “evoluídos” e “estamos cansados das feministas vendo problema em tudo”. Mas o poema segue atual.

Eu, de minha parte, seguirei reclamando. Quero chegar à livraria e, na festa dos livros conhecidos e ainda a serem lidos, ver elas, minhas autoras. Quero poder esbarrar com elas bem no meio da estante, ou – ainda – na bancada, em franco destaque. Quero ouvir o que elas têm a me dizer sem ter que ir procurá-las nos recantos. Quero-as na altura dos meus olhos. Quero poder ver-me nelas e que me vejam também elas.
Por isso, cada vez mais: ler mulheres, escrever sobre mulheres, declamar mulheres.
Por uma estante para também chamar de nossa.


Ps: Em tempo, reclamei com funcionários da livraria que, um pouco sem graça, explicaram algo sobre o rodízio de livros que não fez exatamente sentido, mas disseram que ficariam atentos. 

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