terça-feira, 8 de novembro de 2016

Abro o caderno das flores postas a secar
algumas conservaram forma e perfume
outras desfazem-se no contato com o ar.
Nem tudo que é belo dura.
Nem tudo que em mim (ma)dura foi feito para guardar.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Estradas


Diz-se do laço desfeito
que é vazio no peito e aperto na alma,
cair 20 andares sem ver solo perto,
abraçar saudade pra ver se acalma:
o silêncio deserto de dizer tanto amor
e, depois, não dizer nada.
É fato, des-ver é sempre um espaço de lágrima,
mas por muito que doa a história que acaba
toda mão dada funda uma estrada
quer se trilhe inteira, quer não
porque todo encontro de vida é chão
pra que as sementes inventem caminhada.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Cultura do estupro

Encurva essa coluna
Esconde esse peito
Também com essa bunda
Ainda quer respeito?
Traiu o marido?
Ó o tamanho do vestido.
Mas também, se estivesse em casa.
No caso, qual casa?
A do "ô lá em casa"
Ou do assédio do padrasto?
Tudo é nefasto quando contado
Revolta on line contra os monstros tarados
Mas que ninguém mencione seu estupro domesticado
Seu convite ameaça
Seu toque onde não foi chamado
Sua piada sem graça armada contra meu corpo exausto
Calado, você é trinta
Seu riso é a sentença do meu fado
Sua conivência me violenta ao cadafalso.
Mas meu grito não se encerra nesse quarto
Contra o claustro da tua cultura inculta
Somos muitas.

sábado, 30 de abril de 2016

Chá de mim

Ontem fiz um chá antes de dormir – como o Rio me parece menos absurdo quando posso tomar um chá sem maiores derretimentos. Lia Kundera enquanto mergulhava distraidamente, o sachê na água quase fervente - como a vida me parece menos absurda quando posso estar e não estar dentro de mim.
Como que em um desenho animado infantil, entrou pelos meus pensamentos um som melodicamente imprevisto, tomando o espaço das palavras que ali andavam. Era um farfalhar tão suave, quase não audível, como que vindo de lonjuras e meio perdido por caminhos. Mas também, no quase silêncio do prédio adormecido, era palpavelmente próximo, quase tangível. Fechei os olhos para melhor saboreá-lo. Embora não entendesse ainda de onde vinha, sentia naquele leve encontrar de um não-sei-o-quê com outra-coisa uma fricção entre o que eu sentia e o que entendia. O mundo que me chegava e aquele que eu explicava. As tantas coisas incompreendidas e minha pequena gama de aceitações. Roçavam-se, tênue e bruscamente, a vida que eu acreditava viver e o punhado de fatos que outros chamariam de meu cotidiano. Mal chegava a ser um som, provavelmente era um ruído, não seria captado por microfones, se os houvesse, não seria reproduzível nem por uma orquestra de pulgas. No entanto, confortava-me, não como um entendimento – esses raramente confortam – mas como um afago. A ideia vaga que o esbarrar infindo entre os universos que invento e transito é também uma valsa suave.
Enfim, procurei em volta a origem das minhas explicações desexplicadas. Busquei em volta uma mariposa que batesse largamente asas ou uma fresta de vento que enganasse o vidro. Mas não, era meu próprio punho, arrastando o sachê nas paredes da xícara cada vez que o retirava e devolvia à água - já agora morna, que gerava o quase imperceptível e tão estrondoso som. Mirei minha mão descrente, como se fosse a mão de mais alguém que tivesse se introduzido, sorrateira, na madrugada. Ela continuava sem movimento contínuo como se me sorrisse (será que mãos sorriem?)

Seja como for, sorri eu, vagamente descobrindo como minhas mais imprevistas epifanias estão sempre no inalcançável alcance das minhas próprias mãos. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A poda no jardim de palavras

Meu primeiro plano para o ano é desinventar em mim algumas palavras. Palavras que, pelo peso ou repetição, já andam a fatigar meu linguajar rotineiro e desandar minha pontuação. Mais: palavras meio mesquinhas, assim, erva-daninhas, que em tudo se imiscuem e terminam por furtar os dedicados cuidados que oferto às sementes de metáfora e metalinguagem da plantação.
Culpa, por exemplo. Culpa é uma palavra cansativa. Culpa é uma palavra-erva-daninha. Mal a gente se dá conta, já está lá, plantada no meio das mais incongruentes sentenças. Normalmente, vem com seu prefixo a tiracolo, como que para camuflar dos nossos olhares jardineiros seu real significado. Mas não me engana mais. Dizer “desculpa” é dar raiz para a culpa se criar onde não foi chamada. No meio da frase de despedida e mesmo na saudação de chegada. Entre as frases ditas e como única expressão das caladas. Pelo passo atrás e pelo passo em frente. Já pedi tanta desculpa até por pedir desculpa, que muito me custa arrancar suas elaboradas raízes. Como expressão cotidiana, ando preferindo o “sinto muito”. Porque a grande verdade é essa: eu sinto tanto, eu sinto muito. Eu sinto as coisas que fiz e causaram dores. Em minhas terras ou nos arredores. Eu sinto por tudo que fiz e depois queria ver desfeito. Tudo isso me afeta e espeta, e, nesse sentir intenso e contínuo, vou jogando luz – e aqui e acolá regando-lágrima – no jardim.
Outra palavra que planejo desenraizar dos meus canteiros é “ainda”. Ainda não aconteceu? Ainda está aqui? “Ainda” dá uma impressão de descompasso com nosso próprio tempo, como se pudéssemos andar atrasados nos ponteiros de nossos próprios relógios. Como se o universo não fosse despreocupadamente pontual em todos os seus giros. Ainda também empresta uma perigosa sensação de inevitabilidade. “Ainda não aconteceu” é a certeza velada que atrasadamente acontece. Que o caminho sob os pés espantosamente nos independe. Os “aindas” de meu canteiro aceleram o ciclo dos duradouros “em tempo”, inquietam o amadurecimento dos meus “durantes” e tapam a floração imprevista e bela dos “de repentes”.
Por fim, palavra outra que atrapalha a maturação da minha botânica vocabular é “pronto”. Ah, estar pronto, esse estágio inatingível da matéria que nos empresta justificativa para todo e qualquer adiamento. O texto jamais terminado – não está pronto. O romance jamais começado – não estou pronta. Como se houvesse ideias prontas, e elas ficassem de prontidão a nosso chamado. Como se tudo não fosse ao mesmo tempo completo e em complexo e infindo processo de ir sendo. A semente é ao mesmo tempo pronta e projeto. Também a folha. Também o fruto. Por isso, podo de minha imagem essa minhoca das completudes, que teimava em esconder as flores-mudanças das minhas locuções.
Palavras daninhas devidamente identificadas, preparo-me para o longo tempo das capinas. Não pode ser diferente. Não confio em agrotóxicos. Nem em artificialidades. Olho-me no espelho e me escapa:

- Desculpa, ainda não estou pronta.

Rio ao me responder.

- Sinto muito, sinto tanto que de repente é tempo.