segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A poda no jardim de palavras

Meu primeiro plano para o ano é desinventar em mim algumas palavras. Palavras que, pelo peso ou repetição, já andam a fatigar meu linguajar rotineiro e desandar minha pontuação. Mais: palavras meio mesquinhas, assim, erva-daninhas, que em tudo se imiscuem e terminam por furtar os dedicados cuidados que oferto às sementes de metáfora e metalinguagem da plantação.
Culpa, por exemplo. Culpa é uma palavra cansativa. Culpa é uma palavra-erva-daninha. Mal a gente se dá conta, já está lá, plantada no meio das mais incongruentes sentenças. Normalmente, vem com seu prefixo a tiracolo, como que para camuflar dos nossos olhares jardineiros seu real significado. Mas não me engana mais. Dizer “desculpa” é dar raiz para a culpa se criar onde não foi chamada. No meio da frase de despedida e mesmo na saudação de chegada. Entre as frases ditas e como única expressão das caladas. Pelo passo atrás e pelo passo em frente. Já pedi tanta desculpa até por pedir desculpa, que muito me custa arrancar suas elaboradas raízes. Como expressão cotidiana, ando preferindo o “sinto muito”. Porque a grande verdade é essa: eu sinto tanto, eu sinto muito. Eu sinto as coisas que fiz e causaram dores. Em minhas terras ou nos arredores. Eu sinto por tudo que fiz e depois queria ver desfeito. Tudo isso me afeta e espeta, e, nesse sentir intenso e contínuo, vou jogando luz – e aqui e acolá regando-lágrima – no jardim.
Outra palavra que planejo desenraizar dos meus canteiros é “ainda”. Ainda não aconteceu? Ainda está aqui? “Ainda” dá uma impressão de descompasso com nosso próprio tempo, como se pudéssemos andar atrasados nos ponteiros de nossos próprios relógios. Como se o universo não fosse despreocupadamente pontual em todos os seus giros. Ainda também empresta uma perigosa sensação de inevitabilidade. “Ainda não aconteceu” é a certeza velada que atrasadamente acontece. Que o caminho sob os pés espantosamente nos independe. Os “aindas” de meu canteiro aceleram o ciclo dos duradouros “em tempo”, inquietam o amadurecimento dos meus “durantes” e tapam a floração imprevista e bela dos “de repentes”.
Por fim, palavra outra que atrapalha a maturação da minha botânica vocabular é “pronto”. Ah, estar pronto, esse estágio inatingível da matéria que nos empresta justificativa para todo e qualquer adiamento. O texto jamais terminado – não está pronto. O romance jamais começado – não estou pronta. Como se houvesse ideias prontas, e elas ficassem de prontidão a nosso chamado. Como se tudo não fosse ao mesmo tempo completo e em complexo e infindo processo de ir sendo. A semente é ao mesmo tempo pronta e projeto. Também a folha. Também o fruto. Por isso, podo de minha imagem essa minhoca das completudes, que teimava em esconder as flores-mudanças das minhas locuções.
Palavras daninhas devidamente identificadas, preparo-me para o longo tempo das capinas. Não pode ser diferente. Não confio em agrotóxicos. Nem em artificialidades. Olho-me no espelho e me escapa:

- Desculpa, ainda não estou pronta.

Rio ao me responder.

- Sinto muito, sinto tanto que de repente é tempo.