Sábado
à tarde, festa de criança, entre um salgadinho e uma bola quase acertando o
bolo:
-
Vamos falar sobre Judith Butler?
Não,
não era a chegada enfim das temidas tropas da “Ideologia de Gênero” que em seus
unicórnios fosforescentes acabariam com a infância e com todos os
heterossexuais do mundo. Tampouco era uma invasão de fanáticos queimando bruxas
e confiscando os presentes não normativos da criança (ainda). Éramos só eu e a
sogra da minha amiga papeando.
Ela
tinha assinado a petição contra a Butler muito assustada por tudo que andava
recebendo pelo Whatsapp e ouvindo de seus colegas de trabalho. Abolição dos
gêneros. Não é mais permitido ser homem. Não é mais permitido ser mulher. Crianças
sendo sexualizadas cedo. Uma grande dança de pênis e vaginas por todo lado. Era claro
que não era esse mundo que ela queria. E se a tal da Butler tinha criado a ideologia
de gênero e vinha defender sua agenda pedagógica, era óbvio que tínhamos que
resguardar a educação nacional desse tipo de intromissão.
Se
você conhece algo sobre a obra da Butler ou sobre as propostas de discussão de
gênero nas escolas e leu o texto até agora, está provavelmente rindo e dizendo “esse
pessoal não sabe mesmo de nada”. Entendo o sentimento, volta e meia partilho
dele, mas também me preocupo com ele. Porque ele estereotipa o “outro lado”. Plasma
como massa homogênea quem tem, efetivamente, uma agenda política contra
direitos fundamentais e quem só está mal informado. Ou bem informado por quem
tem um projeto político de ódio e está trabalhando muito por ele. Mas, sobretudo,
quase que impossibilita o diálogo.
Não
foi essa a tônica da nossa tarde. Conversamos longamente. Sobre como quem criou
o termo “ideologia de gênero” não foi ninguém que é a favor de discutir
gênero, mas quem é contra (- Faz sentido, porque seria mesmo um nome horrível
pra alguém dar para algo que defende, Mariana). Sobre como Butler não é
pedagoga, não tem um projeto para a educação brasileira e sequer estava vindo
falar sobre essas discussões. Sobre a obra dela, aliás, desde “Problema de
gênero” até as atuais discussões sobre precariedade. Ela achou muito bonitas e
importantes algumas apropriações da Butler de Hannah Arendt e a nossa
impossibilidade de escolher com quem dividimos o mundo. Achou, inclusive, que
fazia sentido com sua crença religiosa. Conversamos também sobre discutir
gênero nas escolas. Sobre como as crianças já são muito sexualizadas. Sobre
como são impostos padrões desde cedo que podem ser muito violentos. Que
possibilitar que não se imponham os padrões desde tão cedo não é impor outros,
mas abrir espaço para a criança ser somente criança. Sobre a importância disso
para a luta contra a violência contra a mulher, luta antihomofóbica, e também para
sermos humanos mais interessantes.
Salvo
uma ou outra coisa, concordávamos na maior parte dos pontos. Os que não
concordávamos, víamos vários caminhos que comportavam as duas visões. Porque
eram diferentes, mas não totalmente antagônicas. A conversa ficou por aí. Não
sei exatamente se vai fazer diferença frente à enxurrada de correntes no
telefone e discurso de ódio pululante aqui e ali. Mas me fez pensar.
Entre
quem tem um projeto efetivo de cercear direitos fundamentais e impossibilitar
mesmo a discussão teórica de temas progressistas e quem recebe, por exemplo, a
campanha anti-gênero passivamente, há uma vasta paleta de opiniões e
sentimentos. Existe uma diferença fundamental entre quem criou o tal do abaixo
assinado, quem produz o discurso e quem o recebe, atônito.
Ouvindo
o que minha interlocutora entendia por ideologia de gênero, sinceramente, não
me deu exatamente vontade de viver naquele mundo tampouco. E se ela não tinha
igual acesso ao que eu entendia por educação que discute gênero, bom, tem
também um pouco de responsabilidade minha. Responsabilidade “nossa”. Quando a
gente – é difícil definir esse “a gente”, mas existe aqui um “a gente” – diz
que nem vale a pena discutir, faz um meme e fim de papo, estamos nos retirando
do diálogo. Pior, não estamos produzindo contrainformação acessível.
Dizemos
“leiam os livros da Butler antes de falar mal dela” – claro, porque é tão fácil
ler essas obras densas filosoficamente quanto ler a corrente do grupo da
família - “leiam os artigos sobre ela” - nada como a linguagem acadêmica, tão
disponível para todo mundo como um vídeo no youtube, né mesmo?! - respondemos
ironicamente desqualificando imediatamente o outro – ah, esse etéreo outro que
permite o nós – sem a menor possibilidade de o ouvir. Ele que ouça e entenda. E
chamamos isso diálogo.
Não
estou dizendo que a culpa do discurso de ódio é de quem o combate. Nem que é
fácil ter esse tipo de conversa. Passa tanto por paciência quanto por reavaliar
coisas no que a gente fala e pensa. É sempre mais difícil quando envolve
afetos, revisita os preconceitos familiares. Revisita os nossos próprios. Mas é
preciso. Não porque somos pessoas legais que vamos “ensinar” algo a alguém. Mas
porque o projeto de ódio está dando muito certo. E criar um espantalho que não
vê as nuances só o ajuda. É criar do outro lado a bruxa a ser queimada em praça
pública.
E
bom, como a “bruxa” que queimaram hoje tem repetido sem cessar, não podemos
escolher com quem dividir o mundo enquanto ele está aí posto. É melhor fazer
isso conversando. Me passa um brigadeiro?