quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Sobre as bruxas que queimamos e as que criamos – Butler na festinha e a necessidade de conversar

Sábado à tarde, festa de criança, entre um salgadinho e uma bola quase acertando o bolo:

- Vamos falar sobre Judith Butler?

Não, não era a chegada enfim das temidas tropas da “Ideologia de Gênero” que em seus unicórnios fosforescentes acabariam com a infância e com todos os heterossexuais do mundo. Tampouco era uma invasão de fanáticos queimando bruxas e confiscando os presentes não normativos da criança (ainda). Éramos só eu e a sogra da minha amiga papeando.



Ela tinha assinado a petição contra a Butler muito assustada por tudo que andava recebendo pelo Whatsapp e ouvindo de seus colegas de trabalho. Abolição dos gêneros. Não é mais permitido ser homem. Não é mais permitido ser mulher. Crianças sendo sexualizadas cedo. Uma grande dança de pênis e vaginas por todo lado. Era claro que não era esse mundo que ela queria. E se a tal da Butler tinha criado a ideologia de gênero e vinha defender sua agenda pedagógica, era óbvio que tínhamos que resguardar a educação nacional desse tipo de intromissão.

Se você conhece algo sobre a obra da Butler ou sobre as propostas de discussão de gênero nas escolas e leu o texto até agora, está provavelmente rindo e dizendo “esse pessoal não sabe mesmo de nada”. Entendo o sentimento, volta e meia partilho dele, mas também me preocupo com ele. Porque ele estereotipa o “outro lado”. Plasma como massa homogênea quem tem, efetivamente, uma agenda política contra direitos fundamentais e quem só está mal informado. Ou bem informado por quem tem um projeto político de ódio e está trabalhando muito por ele. Mas, sobretudo, quase que impossibilita o diálogo.

Não foi essa a tônica da nossa tarde. Conversamos longamente. Sobre como quem criou o termo “ideologia de gênero” não foi ninguém que é a favor de discutir gênero, mas quem é contra (- Faz sentido, porque seria mesmo um nome horrível pra alguém dar para algo que defende, Mariana). Sobre como Butler não é pedagoga, não tem um projeto para a educação brasileira e sequer estava vindo falar sobre essas discussões. Sobre a obra dela, aliás, desde “Problema de gênero” até as atuais discussões sobre precariedade. Ela achou muito bonitas e importantes algumas apropriações da Butler de Hannah Arendt e a nossa impossibilidade de escolher com quem dividimos o mundo. Achou, inclusive, que fazia sentido com sua crença religiosa. Conversamos também sobre discutir gênero nas escolas. Sobre como as crianças já são muito sexualizadas. Sobre como são impostos padrões desde cedo que podem ser muito violentos. Que possibilitar que não se imponham os padrões desde tão cedo não é impor outros, mas abrir espaço para a criança ser somente criança. Sobre a importância disso para a luta contra a violência contra a mulher, luta antihomofóbica, e também para sermos humanos mais interessantes.

Salvo uma ou outra coisa, concordávamos na maior parte dos pontos. Os que não concordávamos, víamos vários caminhos que comportavam as duas visões. Porque eram diferentes, mas não totalmente antagônicas. A conversa ficou por aí. Não sei exatamente se vai fazer diferença frente à enxurrada de correntes no telefone e discurso de ódio pululante aqui e ali. Mas me fez pensar.

Entre quem tem um projeto efetivo de cercear direitos fundamentais e impossibilitar mesmo a discussão teórica de temas progressistas e quem recebe, por exemplo, a campanha anti-gênero passivamente, há uma vasta paleta de opiniões e sentimentos. Existe uma diferença fundamental entre quem criou o tal do abaixo assinado, quem produz o discurso e quem o recebe, atônito.

Ouvindo o que minha interlocutora entendia por ideologia de gênero, sinceramente, não me deu exatamente vontade de viver naquele mundo tampouco. E se ela não tinha igual acesso ao que eu entendia por educação que discute gênero, bom, tem também um pouco de responsabilidade minha. Responsabilidade “nossa”. Quando a gente – é difícil definir esse “a gente”, mas existe aqui um “a gente” – diz que nem vale a pena discutir, faz um meme e fim de papo, estamos nos retirando do diálogo. Pior, não estamos produzindo contrainformação acessível.

Dizemos “leiam os livros da Butler antes de falar mal dela” – claro, porque é tão fácil ler essas obras densas filosoficamente quanto ler a corrente do grupo da família - “leiam os artigos sobre ela” - nada como a linguagem acadêmica, tão disponível para todo mundo como um vídeo no youtube, né mesmo?! - respondemos ironicamente desqualificando imediatamente o outro – ah, esse etéreo outro que permite o nós – sem a menor possibilidade de o ouvir. Ele que ouça e entenda. E chamamos isso diálogo.

Não estou dizendo que a culpa do discurso de ódio é de quem o combate. Nem que é fácil ter esse tipo de conversa. Passa tanto por paciência quanto por reavaliar coisas no que a gente fala e pensa. É sempre mais difícil quando envolve afetos, revisita os preconceitos familiares. Revisita os nossos próprios. Mas é preciso. Não porque somos pessoas legais que vamos “ensinar” algo a alguém. Mas porque o projeto de ódio está dando muito certo. E criar um espantalho que não vê as nuances só o ajuda. É criar do outro lado a bruxa a ser queimada em praça pública.


E bom, como a “bruxa” que queimaram hoje tem repetido sem cessar, não podemos escolher com quem dividir o mundo enquanto ele está aí posto. É melhor fazer isso conversando. Me passa um brigadeiro?