terça-feira, 27 de novembro de 2018

Com quantas bolhas de sabão se derruba um muro?


Estão construindo uma destruição
já ouço rumores sobre o levantamento de paredes  
para permitir uma sociedade sem portas
onde circulem livremente todas as ideias (certas)
e andem tranquilamente todas as pessoas (boas)
e paremos com isso de ter que adjetivar homem-branco-hetero-cis-que-merda
porque as pessoas são sempre todas
salvo quando não são pessoas.

Estão consumindo uma destruição
e inauguraram ontem um muro alto e robusto chamado Liberdade.
Gostam de dar nomes bonitos para muros
porque nomes bonitos são como janelas
que podemos fechar para não ver o que não é bonito
(e assim se fazem os conceitos).

Teve uma festa grande para mostrar
que agora todos estavam seguros e livres.

Para comemorar
mataram três pessoas
que não eram lá muito pessoas.

Estamos seguindo – isso, sempre.
Parar não é opção quando se é muitos
e querem seu corpo para tijolo.
Eu e os meus temos adjetivos demais
para sermos pessoas,
mas já estamos fazendo rotas de permanência
que são como rotas de resistência
quando não há fuga,
quando não há fora.

Não há como murar nosso jeito de estar.

Se nos obrigam a partir de um tempo
pois que fazemos espaço.

i. me contou que pretende se mudar para um abraço  
b. fez uma fazenda de vagalumes
para ver se alumia outros possíveis
p. trabalha noite e dia fazendo casas de papel
para gente que mora em ideias
l. disse que alistou seu riso para peça de quebra-cabeça 
porque (bendita seja) sempre acredita nos encaixes

e eu? eu tento cruzar pontes a bordo de bolhas de sabão
para ver se enfim a gente se move da gente
até um outro
até o Outro
até ser gente
bombardeando o muro
com mil partículas de encantamento.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

O tempo dos senhores de sempre

É chegado o tempo das palavras ditas
os senhores de sempre pedem seu camarote para mais um giro da história.
Que alívio! Já nem é preciso fingir que suporto o primo bicha, a preta vereadora e essas mocinhas atrevidas a dizer incongruências.
Por favor, lavem as ruas depois do massacre. Não quero saber que sujei as mãos.

É chegado de novo o tempo dos ódios rasgados
e sabíamos que viria porque nada é mais pontual
que a raiva de quem tem tudo.

Mas não nos culpemos tanto se nos distraímos
a esperança de outros jeitos é mesmo matéria nossa.

É chegado o tempo
e nada a fazer,
exceto tudo.

Enfrentar as palavras até que façam sentido
Enfrentar os sentidos até que não se percam em palavras

Acreditar, acreditar, até esgarçar o tecido do sonho.
Cozer com os fios desconexos do possível.
Esses fiapos embolados e tenazes do abraço cotidiano
e da mão dada que nem vejo de onde.
A trama da utopia é persistente:
cede, mas não se desfaz.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Sobre mamãe e abacaxis


Quando eu tinha algo como seis anos, vi um casal de homens em uma novela (bem pioneira, aliás). Corri até minha mãe e perguntei “Mãe, pode?”. Ela me respondeu, com muita naturalidade: “Claro. Homem pode namorar mulher e pode namorar homem. Mulher pode namorar homem e pode namorar mulher. A mamãe namora os dois. Quando você crescer vai poder namorar quem você quiser. Se você chegar em casa com um abacaxi a mamãe só vai dizer: cuidado, minha flor, espeta”.
Não sei ao certo o quanto entendi disso, mas o suficiente para não estranhar muito a primeira vez que acordei e tinha uma mulher dividindo a cama de casal com minha mãe. De fato, pensei que seria bem divertido ter mais uma pessoa em casa para brincar. E foi.
Desde que me entendo por gente minha mãe só teve companheiras. Alguns relacionamentos importantes que também me constituíram como pessoa, outros não tanto. Esse relato terminaria aqui se não fosse um incômodo detalhe: o mundo. Um mundo a quem não interessava que eu era uma criança feliz, crescendo consideravelmente bem e saudável. Um mundo a quem não interessava que minha mãe era uma profissional competente e dedicada. Um mundo que só tinha a nos dizer: não está certo. Sobretudo no interior do país. Sobretudo nos anos 1990.
Embora conheçamos o preconceito por seus raros momentos mais declarados, a verdade é que ele é bem sub-reptício. São olhares enviesados, desconfianças, afastamentos inexplicáveis, tudo cercado por um muro de silêncio tão inexpugnável quanto mudo. Assim, pessoas desapareciam de nossas vidas, promoções eram negadas a minha mãe, convites para festas não chegavam e a gente sabia e não sabia os porquês. Lembro de duas situações explícitas. Uma conversa engraçada com uma amiguinha de colégio, lá por uns oito anos de idade. Ela tentava me explicar porque eu podia dormir na casa dela, mas ela não podia dormir na minha. Baixou a voz e disse, enfática “Sua mãe, né?” provavelmente repetindo o tom que usara alguém de sua família. Fiquei olhando algum tempo sem entender porque minha mãe seria um problema para alguém dormir. Ela nem roncava. Ao contrário, o cheiro do seu colo sempre tinha me parecido dos melhores soníferos do universo. Outra vez, mais tarde, ouvi alguém falando que eu morava na “casa das três sapatões”. Já, então, entendendo um pouco mais sobre preconceitos, ainda passei algum tempo confusa na matemática pensando quem seria a terceira. Do alto dos meus onze anos estava definitivamente mais interessada em pular amarelinha que definir minha sexualidade.
Se por um lado o mundo podia – e pode – ser assim cruel, não posso reclamar nem um pouco da minha vida. A cidade nos vedava sem pudores entradas, mas criávamos para nós uma casa-quartel-general de tudo que de alguma forma também não se adequava ou não queria se adequar. Ou seja, gente muito mais verdadeira e divertida.
Cresci, assim, cercada das pessoas mais sinceras e sensíveis que posso imaginar, as que pulavam muros ou derrubavam muros diariamente. Não deixa de ser uma peneira importante para gente para se ter perto. Conhecer a intolerância cedo também é conhecer a capacidade humana de superá-la. Penso aqui nas várias pessoas que, por mais que tenham tido como primeira reação dar um passo atrás para uma família que ainda não entendiam, deram depois dois ou mais passos à frente. E estão até hoje por perto.
Mas cresci também vendo minha mãe sofrer por todos os lados as consequências desse preconceito dito e não dito. A solidão, as dificuldades profissionais, as cobranças maiores da própria família (sendo mulher, mãe solteira e lésbica, não podia ser nada menos que ótima para ser aceita). Tudo isso que faz mal ao corpo, à cabeça, à alma. Por isso a admiro ainda mais, em meio a estes trancos e barrancos todos, por jamais ter desistido. Nem profissionalmente, nem desistido de acreditar na possibilidade das pessoas romperem seus pré julgamentos, nem, sobretudo, na possibilidade de amar. Quando penso nela hoje feliz com sua companheira (agora até juridicamente reconhecida, que a gente nem pensava ser possível uns anos atrás), tendo adotado uma cachorra e fazendo planos para fazer quebra-cabeças na aposentadoria, e penso em todos os percalços até aqui, e que persistem, só consigo pensar na palavra coragem.
É preciso muita força para seguir amando em um mundo tão despreparado para o amor. Isso, felizmente, ela me ensinou desde cedo e em todos os sentidos que posso imaginar: amar. Muito.
Ah, e se para alguém isso interessa – e não acho que era para interessar – meu desejo sempre se orientou para homens. Ou, talvez, aqui minha mãe me corrigisse dizendo que tenho mais um gosto para abacaxis caprichados nos espinhos. É até estranho escrever isso nesse relato, mas como é uma pergunta que sempre ouço, acho importante bater na tecla. Não sou especialista nem em psicologia nem em genética, mas tenho a impressão que se orientação sexual fosse uma herança de dna ou aprendida pela observação estrita não teria nenhum caso de filhos homossexuais de casais heterossexuais. Isso, bom, a empiria já desmente por mim. Não sei porque teria que funcionar na via contrária, então. Mas uma coisa que definitivamente aprendi é que os preconceitos não operam por vias lógicas. Só por vias de ódio mesmo.
Contra esse ódio, contra essa incompreensão toda, felizmente vi uma vitória constante (mesmo que às vezes uma vitória exausta e por poucos décimos) do continuar amando. Obrigada por isso, mãe.

Texto publicado originalmente no site Mundo Delash em outubro de 2016, momentaneamente indisponível. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Hoje dançamos na cozinha de manhã

Hoje dançamos na cozinha de manhã
apesar da ressaca dos recentes acontecimentos
Nos últimos tempos há algo, sempre algo, acontecendo
e nenhum dia parece propício para dançar mas
que bom que nos conhecemos em tempos mais delicados
e era permitida certa felicidade ingênua que agora parece tão despropositada
naquele tempo acho que também aconteciam coisas intragáveis
e só não tínhamos ainda a densidade de digeri-las
e hoje nos culpamos por não ter sentado à mesa no tempo certo
e provado do amargo desse café e virado a mesa
(como se pudéssemos nós só por não adoçarmos o café virarmos a mesa)
Saber é sempre um salto e já faz uns anos que estamos caindo
mas prefiro pensar que em qualquer tempo em que nos conhecêssemos
inventaríamos levezas como inventamos agora
apesar da preparação pro dia de ponderação sombria
de pesos e medidas
e perdas e mais perdas.
Eu gostava de matemática no colégio
quando estudava as somas
não sei contar perdas porque é como contar nadas
e ninguém tinha dito como o nada se avoluma
talvez a professora de literatura
mas prestávamos mais atenção na gramática
para brincar com as vírgulas das orações
o que também é um jeito de rezar nesses dias tão descrentes.
Ao menos dançamos na cozinha de manhã
como se o dia não fosse pisar no nosso pé
como se não fosse tão incongruente ser um pouco feliz
mas talvez seja mais incongruente não dançar na cozinha de manhã
quando cada vez mais o que nos resta é dançar na cozinha
e abraçar como quem empresta
uma armadura a cada despedida. 

Recado ao poeta

Um dia eu conheci um poeta que me disse que muito amava as mulheres
Eu já ia dizer "muito obrigada" quando ele fez "psiu psiu, calada"
Eu não terminei de dizer o quanto eu amo a voz das mulheres
"Ô seu poeta, é piada" eu pensava. Mas não, não fala não.
Já te contei toda minha admiração pela doce essência das mulheres.
Eu já revoltada falei "vou embora, esse cara não entendeu nada" quando ele acusa.
"Ó mulher ingrata, eu aqui te louvando e você não quer ser minha musa?"
Bom, vou tentar desenhar para ver se dessa vez vai, ô seu poeta.
Primeiro: não é elogioso isso de admiração quando quer dizer "fica quieta".
Como se você tivesse tinta e pincel e eu, bom, eu fosse a tela.
Ou você escuta o que eu digo ou esse teu encanto não tem nada a ver comigo.
Segundo: não tenho menor obrigação com teus devaneios de paixão.
Não tô confusa por não querer ser sua musa
Nem tenho culpa se eu tava feliz olhando pro nada e você quis achar que era pra você e apaixonada
Deve ser difícil entender, mas a minha existência não é sobre você.
No mais, eu não tô de brincadeira,
não vim ao mundo ser só a companheira
de alguém que é, esse sim, o artista,
Acorda, poeta, a minha voz é a minha conquista
Seu verso sobre mim não me acessa
Lê meus poemas e aí a gente conversa.
Tentei dar esse recado rimado para ver se fica bem entendido
Não sou sua musa, não sou sua flor e não quero ser seu bem
Porque A poeta sou eu, também.
E, amigo, minha arte vai muito além do seu umbigo. 

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Um telefonema entre dois ciclos de saturno



- Mãe, ser adulta é ficar?
- Acho que é ter coragem de ir. 
- Talvez seja sobre continuar. 
- Mas também permitir-se parar. 
- É encararar?
- É não fugir. 
- Mas fugir pode ser tanta coisa. Pode ser permanecer partindo. Pode ser inquietar-se parada.
- Não fugir é conhecer a sua fuga. Não fugir é andar a sua estrada. 
- Minha mãe, ando tão perdida.
- Filha, que alívio, já te cria por demais encontrada. 
- Mas mãe, cada vez sei mais pouco. 
- Que bom, minha filha. Saber quase tudo é oco. Mais vale saber quase nada.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Prólogo

Percebi seu olhar na prateleira
meio de lado, como pra ser e não ser notado
em um flerte distraído.
E bom, confesso, me interesso
pela lombada e, sobretudo, pelo título.
Mas, antes de qualquer introdução, um aviso
não queira passar por mim
e parecer que não foi lido.
Comigo não tem dessas de páginas só entreabertas
pra preservar seu tecido.
Escrevo, dobro, grifo e grito
que não há boa leitura 
que não esgarce os sentidos.
Eu também venho cheia de marcas
e até o encontro de traças
já remoldando a memória de um ou outro capítulo.
Mas tenho mesmo apreço
até pelas manchas deixadas
pelo marcador colorido.
Convenhamos, em toda boa história
ninguém chega incólume ao epílogo.