Quando eu tinha algo como seis anos, vi um
casal de homens em uma novela (bem pioneira, aliás). Corri até minha mãe e
perguntei “Mãe, pode?”. Ela me respondeu, com muita naturalidade: “Claro. Homem
pode namorar mulher e pode namorar homem. Mulher pode namorar homem e pode
namorar mulher. A mamãe namora os dois. Quando você crescer vai poder namorar
quem você quiser. Se você chegar em casa com um abacaxi a mamãe só vai dizer:
cuidado, minha flor, espeta”.
Não sei ao certo o quanto entendi disso,
mas o suficiente para não estranhar muito a primeira vez que acordei e tinha
uma mulher dividindo a cama de casal com minha mãe. De fato, pensei que seria
bem divertido ter mais uma pessoa em casa para brincar. E foi.
Desde que me entendo por gente minha mãe
só teve companheiras. Alguns relacionamentos importantes que também me
constituíram como pessoa, outros não tanto. Esse relato terminaria aqui se não
fosse um incômodo detalhe: o mundo. Um mundo a quem não interessava que eu era
uma criança feliz, crescendo consideravelmente bem e saudável. Um mundo a quem
não interessava que minha mãe era uma profissional competente e dedicada. Um
mundo que só tinha a nos dizer: não está certo. Sobretudo no interior do país.
Sobretudo nos anos 1990.
Embora conheçamos o preconceito por seus
raros momentos mais declarados, a verdade é que ele é bem sub-reptício. São
olhares enviesados, desconfianças, afastamentos inexplicáveis, tudo cercado por
um muro de silêncio tão inexpugnável quanto mudo. Assim, pessoas desapareciam
de nossas vidas, promoções eram negadas a minha mãe, convites para festas não
chegavam e a gente sabia e não sabia os porquês. Lembro de duas situações
explícitas. Uma conversa engraçada com uma amiguinha de colégio, lá por uns
oito anos de idade. Ela tentava me explicar porque eu podia dormir na casa
dela, mas ela não podia dormir na minha. Baixou a voz e disse, enfática “Sua
mãe, né?” provavelmente repetindo o tom que usara alguém de sua família. Fiquei
olhando algum tempo sem entender porque minha mãe seria um problema para alguém
dormir. Ela nem roncava. Ao contrário, o cheiro do seu colo sempre tinha me
parecido dos melhores soníferos do universo. Outra vez, mais tarde, ouvi alguém
falando que eu morava na “casa das três sapatões”. Já, então, entendendo um
pouco mais sobre preconceitos, ainda passei algum tempo confusa na matemática
pensando quem seria a terceira. Do alto dos meus onze anos estava
definitivamente mais interessada em pular amarelinha que definir minha
sexualidade.
Se por um lado o mundo podia – e pode –
ser assim cruel, não posso reclamar nem um pouco da minha vida. A cidade nos
vedava sem pudores entradas, mas criávamos para nós uma casa-quartel-general de
tudo que de alguma forma também não se adequava ou não queria se adequar. Ou
seja, gente muito mais verdadeira e divertida.
Cresci, assim, cercada das pessoas mais
sinceras e sensíveis que posso imaginar, as que pulavam muros ou derrubavam
muros diariamente. Não deixa de ser uma peneira importante para gente para se
ter perto. Conhecer a intolerância cedo também é conhecer a capacidade humana
de superá-la. Penso aqui nas várias pessoas que, por mais que tenham tido como
primeira reação dar um passo atrás para uma família que ainda não entendiam,
deram depois dois ou mais passos à frente. E estão até hoje por perto.
Mas cresci também vendo minha mãe sofrer
por todos os lados as consequências desse preconceito dito e não dito. A
solidão, as dificuldades profissionais, as cobranças maiores da própria família
(sendo mulher, mãe solteira e lésbica, não podia ser nada menos que ótima para
ser aceita). Tudo isso que faz mal ao corpo, à cabeça, à alma. Por isso a
admiro ainda mais, em meio a estes trancos e barrancos todos, por jamais ter
desistido. Nem profissionalmente, nem desistido de acreditar na possibilidade
das pessoas romperem seus pré julgamentos, nem, sobretudo, na possibilidade de
amar. Quando penso nela hoje feliz com sua companheira (agora até juridicamente
reconhecida, que a gente nem pensava ser possível uns anos atrás), tendo
adotado uma cachorra e fazendo planos para fazer quebra-cabeças na
aposentadoria, e penso em todos os percalços até aqui, e que persistem, só
consigo pensar na palavra coragem.
É preciso muita força para seguir amando
em um mundo tão despreparado para o amor. Isso, felizmente, ela me ensinou
desde cedo e em todos os sentidos que posso imaginar: amar. Muito.
Ah, e se para alguém isso interessa – e
não acho que era para interessar – meu desejo sempre se orientou para homens.
Ou, talvez, aqui minha mãe me corrigisse dizendo que tenho mais um gosto para
abacaxis caprichados nos espinhos. É até estranho escrever isso nesse relato,
mas como é uma pergunta que sempre ouço, acho importante bater na tecla. Não
sou especialista nem em psicologia nem em genética, mas tenho a impressão que
se orientação sexual fosse uma herança de dna ou aprendida pela observação
estrita não teria nenhum caso de filhos homossexuais de casais heterossexuais.
Isso, bom, a empiria já desmente por mim. Não sei porque teria que funcionar na
via contrária, então. Mas uma coisa que definitivamente aprendi é que os
preconceitos não operam por vias lógicas. Só por vias de ódio mesmo.
Contra esse ódio, contra essa
incompreensão toda, felizmente vi uma vitória constante (mesmo que às vezes uma
vitória exausta e por poucos décimos) do continuar amando. Obrigada por isso,
mãe.
Texto publicado originalmente no site Mundo Delash em outubro de 2016, momentaneamente indisponível.