terça-feira, 27 de novembro de 2018

Com quantas bolhas de sabão se derruba um muro?


Estão construindo uma destruição
já ouço rumores sobre o levantamento de paredes  
para permitir uma sociedade sem portas
onde circulem livremente todas as ideias (certas)
e andem tranquilamente todas as pessoas (boas)
e paremos com isso de ter que adjetivar homem-branco-hetero-cis-que-merda
porque as pessoas são sempre todas
salvo quando não são pessoas.

Estão consumindo uma destruição
e inauguraram ontem um muro alto e robusto chamado Liberdade.
Gostam de dar nomes bonitos para muros
porque nomes bonitos são como janelas
que podemos fechar para não ver o que não é bonito
(e assim se fazem os conceitos).

Teve uma festa grande para mostrar
que agora todos estavam seguros e livres.

Para comemorar
mataram três pessoas
que não eram lá muito pessoas.

Estamos seguindo – isso, sempre.
Parar não é opção quando se é muitos
e querem seu corpo para tijolo.
Eu e os meus temos adjetivos demais
para sermos pessoas,
mas já estamos fazendo rotas de permanência
que são como rotas de resistência
quando não há fuga,
quando não há fora.

Não há como murar nosso jeito de estar.

Se nos obrigam a partir de um tempo
pois que fazemos espaço.

i. me contou que pretende se mudar para um abraço  
b. fez uma fazenda de vagalumes
para ver se alumia outros possíveis
p. trabalha noite e dia fazendo casas de papel
para gente que mora em ideias
l. disse que alistou seu riso para peça de quebra-cabeça 
porque (bendita seja) sempre acredita nos encaixes

e eu? eu tento cruzar pontes a bordo de bolhas de sabão
para ver se enfim a gente se move da gente
até um outro
até o Outro
até ser gente
bombardeando o muro
com mil partículas de encantamento.


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Sobre mamãe e abacaxis


Quando eu tinha algo como seis anos, vi um casal de homens em uma novela (bem pioneira, aliás). Corri até minha mãe e perguntei “Mãe, pode?”. Ela me respondeu, com muita naturalidade: “Claro. Homem pode namorar mulher e pode namorar homem. Mulher pode namorar homem e pode namorar mulher. A mamãe namora os dois. Quando você crescer vai poder namorar quem você quiser. Se você chegar em casa com um abacaxi a mamãe só vai dizer: cuidado, minha flor, espeta”.
Não sei ao certo o quanto entendi disso, mas o suficiente para não estranhar muito a primeira vez que acordei e tinha uma mulher dividindo a cama de casal com minha mãe. De fato, pensei que seria bem divertido ter mais uma pessoa em casa para brincar. E foi.
Desde que me entendo por gente minha mãe só teve companheiras. Alguns relacionamentos importantes que também me constituíram como pessoa, outros não tanto. Esse relato terminaria aqui se não fosse um incômodo detalhe: o mundo. Um mundo a quem não interessava que eu era uma criança feliz, crescendo consideravelmente bem e saudável. Um mundo a quem não interessava que minha mãe era uma profissional competente e dedicada. Um mundo que só tinha a nos dizer: não está certo. Sobretudo no interior do país. Sobretudo nos anos 1990.
Embora conheçamos o preconceito por seus raros momentos mais declarados, a verdade é que ele é bem sub-reptício. São olhares enviesados, desconfianças, afastamentos inexplicáveis, tudo cercado por um muro de silêncio tão inexpugnável quanto mudo. Assim, pessoas desapareciam de nossas vidas, promoções eram negadas a minha mãe, convites para festas não chegavam e a gente sabia e não sabia os porquês. Lembro de duas situações explícitas. Uma conversa engraçada com uma amiguinha de colégio, lá por uns oito anos de idade. Ela tentava me explicar porque eu podia dormir na casa dela, mas ela não podia dormir na minha. Baixou a voz e disse, enfática “Sua mãe, né?” provavelmente repetindo o tom que usara alguém de sua família. Fiquei olhando algum tempo sem entender porque minha mãe seria um problema para alguém dormir. Ela nem roncava. Ao contrário, o cheiro do seu colo sempre tinha me parecido dos melhores soníferos do universo. Outra vez, mais tarde, ouvi alguém falando que eu morava na “casa das três sapatões”. Já, então, entendendo um pouco mais sobre preconceitos, ainda passei algum tempo confusa na matemática pensando quem seria a terceira. Do alto dos meus onze anos estava definitivamente mais interessada em pular amarelinha que definir minha sexualidade.
Se por um lado o mundo podia – e pode – ser assim cruel, não posso reclamar nem um pouco da minha vida. A cidade nos vedava sem pudores entradas, mas criávamos para nós uma casa-quartel-general de tudo que de alguma forma também não se adequava ou não queria se adequar. Ou seja, gente muito mais verdadeira e divertida.
Cresci, assim, cercada das pessoas mais sinceras e sensíveis que posso imaginar, as que pulavam muros ou derrubavam muros diariamente. Não deixa de ser uma peneira importante para gente para se ter perto. Conhecer a intolerância cedo também é conhecer a capacidade humana de superá-la. Penso aqui nas várias pessoas que, por mais que tenham tido como primeira reação dar um passo atrás para uma família que ainda não entendiam, deram depois dois ou mais passos à frente. E estão até hoje por perto.
Mas cresci também vendo minha mãe sofrer por todos os lados as consequências desse preconceito dito e não dito. A solidão, as dificuldades profissionais, as cobranças maiores da própria família (sendo mulher, mãe solteira e lésbica, não podia ser nada menos que ótima para ser aceita). Tudo isso que faz mal ao corpo, à cabeça, à alma. Por isso a admiro ainda mais, em meio a estes trancos e barrancos todos, por jamais ter desistido. Nem profissionalmente, nem desistido de acreditar na possibilidade das pessoas romperem seus pré julgamentos, nem, sobretudo, na possibilidade de amar. Quando penso nela hoje feliz com sua companheira (agora até juridicamente reconhecida, que a gente nem pensava ser possível uns anos atrás), tendo adotado uma cachorra e fazendo planos para fazer quebra-cabeças na aposentadoria, e penso em todos os percalços até aqui, e que persistem, só consigo pensar na palavra coragem.
É preciso muita força para seguir amando em um mundo tão despreparado para o amor. Isso, felizmente, ela me ensinou desde cedo e em todos os sentidos que posso imaginar: amar. Muito.
Ah, e se para alguém isso interessa – e não acho que era para interessar – meu desejo sempre se orientou para homens. Ou, talvez, aqui minha mãe me corrigisse dizendo que tenho mais um gosto para abacaxis caprichados nos espinhos. É até estranho escrever isso nesse relato, mas como é uma pergunta que sempre ouço, acho importante bater na tecla. Não sou especialista nem em psicologia nem em genética, mas tenho a impressão que se orientação sexual fosse uma herança de dna ou aprendida pela observação estrita não teria nenhum caso de filhos homossexuais de casais heterossexuais. Isso, bom, a empiria já desmente por mim. Não sei porque teria que funcionar na via contrária, então. Mas uma coisa que definitivamente aprendi é que os preconceitos não operam por vias lógicas. Só por vias de ódio mesmo.
Contra esse ódio, contra essa incompreensão toda, felizmente vi uma vitória constante (mesmo que às vezes uma vitória exausta e por poucos décimos) do continuar amando. Obrigada por isso, mãe.

Texto publicado originalmente no site Mundo Delash em outubro de 2016, momentaneamente indisponível. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Hoje dançamos na cozinha de manhã

Hoje dançamos na cozinha de manhã
apesar da ressaca dos recentes acontecimentos
Nos últimos tempos há algo, sempre algo, acontecendo
e nenhum dia parece propício para dançar mas
que bom que nos conhecemos em tempos mais delicados
e era permitida certa felicidade ingênua que agora parece tão despropositada
naquele tempo acho que também aconteciam coisas intragáveis
e só não tínhamos ainda a densidade de digeri-las
e hoje nos culpamos por não ter sentado à mesa no tempo certo
e provado do amargo desse café e virado a mesa
(como se pudéssemos nós só por não adoçarmos o café virarmos a mesa)
Saber é sempre um salto e já faz uns anos que estamos caindo
mas prefiro pensar que em qualquer tempo em que nos conhecêssemos
inventaríamos levezas como inventamos agora
apesar da preparação pro dia de ponderação sombria
de pesos e medidas
e perdas e mais perdas.
Eu gostava de matemática no colégio
quando estudava as somas
não sei contar perdas porque é como contar nadas
e ninguém tinha dito como o nada se avoluma
talvez a professora de literatura
mas prestávamos mais atenção na gramática
para brincar com as vírgulas das orações
o que também é um jeito de rezar nesses dias tão descrentes.
Ao menos dançamos na cozinha de manhã
como se o dia não fosse pisar no nosso pé
como se não fosse tão incongruente ser um pouco feliz
mas talvez seja mais incongruente não dançar na cozinha de manhã
quando cada vez mais o que nos resta é dançar na cozinha
e abraçar como quem empresta
uma armadura a cada despedida. 

Recado ao poeta

Um dia eu conheci um poeta que me disse que muito amava as mulheres
Eu já ia dizer "muito obrigada" quando ele fez "psiu psiu, calada"
Eu não terminei de dizer o quanto eu amo a voz das mulheres
"Ô seu poeta, é piada" eu pensava. Mas não, não fala não.
Já te contei toda minha admiração pela doce essência das mulheres.
Eu já revoltada falei "vou embora, esse cara não entendeu nada" quando ele acusa.
"Ó mulher ingrata, eu aqui te louvando e você não quer ser minha musa?"
Bom, vou tentar desenhar para ver se dessa vez vai, ô seu poeta.
Primeiro: não é elogioso isso de admiração quando quer dizer "fica quieta".
Como se você tivesse tinta e pincel e eu, bom, eu fosse a tela.
Ou você escuta o que eu digo ou esse teu encanto não tem nada a ver comigo.
Segundo: não tenho menor obrigação com teus devaneios de paixão.
Não tô confusa por não querer ser sua musa
Nem tenho culpa se eu tava feliz olhando pro nada e você quis achar que era pra você e apaixonada
Deve ser difícil entender, mas a minha existência não é sobre você.
No mais, eu não tô de brincadeira,
não vim ao mundo ser só a companheira
de alguém que é, esse sim, o artista,
Acorda, poeta, a minha voz é a minha conquista
Seu verso sobre mim não me acessa
Lê meus poemas e aí a gente conversa.
Tentei dar esse recado rimado para ver se fica bem entendido
Não sou sua musa, não sou sua flor e não quero ser seu bem
Porque A poeta sou eu, também.
E, amigo, minha arte vai muito além do seu umbigo. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Sobre as bruxas que queimamos e as que criamos – Butler na festinha e a necessidade de conversar

Sábado à tarde, festa de criança, entre um salgadinho e uma bola quase acertando o bolo:

- Vamos falar sobre Judith Butler?

Não, não era a chegada enfim das temidas tropas da “Ideologia de Gênero” que em seus unicórnios fosforescentes acabariam com a infância e com todos os heterossexuais do mundo. Tampouco era uma invasão de fanáticos queimando bruxas e confiscando os presentes não normativos da criança (ainda). Éramos só eu e a sogra da minha amiga papeando.



Ela tinha assinado a petição contra a Butler muito assustada por tudo que andava recebendo pelo Whatsapp e ouvindo de seus colegas de trabalho. Abolição dos gêneros. Não é mais permitido ser homem. Não é mais permitido ser mulher. Crianças sendo sexualizadas cedo. Uma grande dança de pênis e vaginas por todo lado. Era claro que não era esse mundo que ela queria. E se a tal da Butler tinha criado a ideologia de gênero e vinha defender sua agenda pedagógica, era óbvio que tínhamos que resguardar a educação nacional desse tipo de intromissão.

Se você conhece algo sobre a obra da Butler ou sobre as propostas de discussão de gênero nas escolas e leu o texto até agora, está provavelmente rindo e dizendo “esse pessoal não sabe mesmo de nada”. Entendo o sentimento, volta e meia partilho dele, mas também me preocupo com ele. Porque ele estereotipa o “outro lado”. Plasma como massa homogênea quem tem, efetivamente, uma agenda política contra direitos fundamentais e quem só está mal informado. Ou bem informado por quem tem um projeto político de ódio e está trabalhando muito por ele. Mas, sobretudo, quase que impossibilita o diálogo.

Não foi essa a tônica da nossa tarde. Conversamos longamente. Sobre como quem criou o termo “ideologia de gênero” não foi ninguém que é a favor de discutir gênero, mas quem é contra (- Faz sentido, porque seria mesmo um nome horrível pra alguém dar para algo que defende, Mariana). Sobre como Butler não é pedagoga, não tem um projeto para a educação brasileira e sequer estava vindo falar sobre essas discussões. Sobre a obra dela, aliás, desde “Problema de gênero” até as atuais discussões sobre precariedade. Ela achou muito bonitas e importantes algumas apropriações da Butler de Hannah Arendt e a nossa impossibilidade de escolher com quem dividimos o mundo. Achou, inclusive, que fazia sentido com sua crença religiosa. Conversamos também sobre discutir gênero nas escolas. Sobre como as crianças já são muito sexualizadas. Sobre como são impostos padrões desde cedo que podem ser muito violentos. Que possibilitar que não se imponham os padrões desde tão cedo não é impor outros, mas abrir espaço para a criança ser somente criança. Sobre a importância disso para a luta contra a violência contra a mulher, luta antihomofóbica, e também para sermos humanos mais interessantes.

Salvo uma ou outra coisa, concordávamos na maior parte dos pontos. Os que não concordávamos, víamos vários caminhos que comportavam as duas visões. Porque eram diferentes, mas não totalmente antagônicas. A conversa ficou por aí. Não sei exatamente se vai fazer diferença frente à enxurrada de correntes no telefone e discurso de ódio pululante aqui e ali. Mas me fez pensar.

Entre quem tem um projeto efetivo de cercear direitos fundamentais e impossibilitar mesmo a discussão teórica de temas progressistas e quem recebe, por exemplo, a campanha anti-gênero passivamente, há uma vasta paleta de opiniões e sentimentos. Existe uma diferença fundamental entre quem criou o tal do abaixo assinado, quem produz o discurso e quem o recebe, atônito.

Ouvindo o que minha interlocutora entendia por ideologia de gênero, sinceramente, não me deu exatamente vontade de viver naquele mundo tampouco. E se ela não tinha igual acesso ao que eu entendia por educação que discute gênero, bom, tem também um pouco de responsabilidade minha. Responsabilidade “nossa”. Quando a gente – é difícil definir esse “a gente”, mas existe aqui um “a gente” – diz que nem vale a pena discutir, faz um meme e fim de papo, estamos nos retirando do diálogo. Pior, não estamos produzindo contrainformação acessível.

Dizemos “leiam os livros da Butler antes de falar mal dela” – claro, porque é tão fácil ler essas obras densas filosoficamente quanto ler a corrente do grupo da família - “leiam os artigos sobre ela” - nada como a linguagem acadêmica, tão disponível para todo mundo como um vídeo no youtube, né mesmo?! - respondemos ironicamente desqualificando imediatamente o outro – ah, esse etéreo outro que permite o nós – sem a menor possibilidade de o ouvir. Ele que ouça e entenda. E chamamos isso diálogo.

Não estou dizendo que a culpa do discurso de ódio é de quem o combate. Nem que é fácil ter esse tipo de conversa. Passa tanto por paciência quanto por reavaliar coisas no que a gente fala e pensa. É sempre mais difícil quando envolve afetos, revisita os preconceitos familiares. Revisita os nossos próprios. Mas é preciso. Não porque somos pessoas legais que vamos “ensinar” algo a alguém. Mas porque o projeto de ódio está dando muito certo. E criar um espantalho que não vê as nuances só o ajuda. É criar do outro lado a bruxa a ser queimada em praça pública.


E bom, como a “bruxa” que queimaram hoje tem repetido sem cessar, não podemos escolher com quem dividir o mundo enquanto ele está aí posto. É melhor fazer isso conversando. Me passa um brigadeiro? 

sábado, 30 de abril de 2016

Chá de mim

Ontem fiz um chá antes de dormir – como o Rio me parece menos absurdo quando posso tomar um chá sem maiores derretimentos. Lia Kundera enquanto mergulhava distraidamente, o sachê na água quase fervente - como a vida me parece menos absurda quando posso estar e não estar dentro de mim.
Como que em um desenho animado infantil, entrou pelos meus pensamentos um som melodicamente imprevisto, tomando o espaço das palavras que ali andavam. Era um farfalhar tão suave, quase não audível, como que vindo de lonjuras e meio perdido por caminhos. Mas também, no quase silêncio do prédio adormecido, era palpavelmente próximo, quase tangível. Fechei os olhos para melhor saboreá-lo. Embora não entendesse ainda de onde vinha, sentia naquele leve encontrar de um não-sei-o-quê com outra-coisa uma fricção entre o que eu sentia e o que entendia. O mundo que me chegava e aquele que eu explicava. As tantas coisas incompreendidas e minha pequena gama de aceitações. Roçavam-se, tênue e bruscamente, a vida que eu acreditava viver e o punhado de fatos que outros chamariam de meu cotidiano. Mal chegava a ser um som, provavelmente era um ruído, não seria captado por microfones, se os houvesse, não seria reproduzível nem por uma orquestra de pulgas. No entanto, confortava-me, não como um entendimento – esses raramente confortam – mas como um afago. A ideia vaga que o esbarrar infindo entre os universos que invento e transito é também uma valsa suave.
Enfim, procurei em volta a origem das minhas explicações desexplicadas. Busquei em volta uma mariposa que batesse largamente asas ou uma fresta de vento que enganasse o vidro. Mas não, era meu próprio punho, arrastando o sachê nas paredes da xícara cada vez que o retirava e devolvia à água - já agora morna, que gerava o quase imperceptível e tão estrondoso som. Mirei minha mão descrente, como se fosse a mão de mais alguém que tivesse se introduzido, sorrateira, na madrugada. Ela continuava sem movimento contínuo como se me sorrisse (será que mãos sorriem?)

Seja como for, sorri eu, vagamente descobrindo como minhas mais imprevistas epifanias estão sempre no inalcançável alcance das minhas próprias mãos. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Definição

Poesia: quando pressinto que sinto de forma assim perigosa
já assinto que me escape a prosa.