Essa piranha só quer roubar meu namorado. Mas também, olha o short, não
se dá o respeito. Feminista só pode ser à toa, não tem um tanque de roupa pra
lavar? Tá só querendo aparecer com essa história vitimista. Não confio em
mulher metida a gostosa. Tadinha, ela é manipulada. Eu sou mais feminista que
você.
Começo esse texto com um profundo
suspiro. Não imagino outra forma de começar. Em coisa de duas semanas ouvi ou
presenciei todas as situações acima & outras. Justamente em março.
Justamente nas semanas em que vejo auditórios se encherem para falar de
feminismos. Todas tão perto de mim que me deram certa claustrofobia. E lembraram certo deserto.
Quando eu fazia pesquisas históricas no
Arquivo Nacional, lá nos idos de 2009 – e de repente me dou conta que já
tem uns anos que estou nessas feminituras todas – encontrei um artigo do início dos anos 1980, cujo título jamais me saiu da
memória: “Um sentimento incômodo de solidão”. Acho que nunca saiu da cabeça
porque desde que comecei a me entender como feminista (e gente, que processo
louco e lindo é esse de se descobrir tão vulnerável e tão potente ao mesmo
tempo: saber-se alvo de tantas opressões mas, ao sabê-las ali, poder, enfim, procurar caminho de resisti-las) senti seguidas vezes essa recorrente solidão.
É uma solidão engraçada. Sinto ter ao
meu lado metade da humanidade. E ninguém contra mim (não, homens, não os vejo
como oponentes). E, ainda assim, me sinto só. Talvez seja porque esse diaxo
dessa dominação simbólica realmente nos fez acreditar que somos inimigas, e que,
mesmo quando nos reconhecemos como participantes de uma mesma luta, temos que
competir. Talvez seja a violência incrível de acreditar que tanto eu quanto a
mulher ao meu lado, de alguma forma, só existiremos na constância de uma presença
masculina, pela qual temos que nos digladiar. Talvez seja porque interessa
muito que nos acreditemos desunidas para que nada mude.
O texto da Irede Cardoso, aquele lá
da década de 1980, falava das críticas de dentro e de fora do movimento
feminista. Tem várias que acho muito válidas, até. O feminismo liberal já
invisibilisou muitas causas, já deixou (quase todas as) mulheres de fora, já reproduziu
muitas opressões. Tem pouco tempo que conseguiu olhar para si no espelho e
perceber o quanto podia – ele mesmo – ser excludente. Daí descobriu-se podendo
ser vários. E agora muitos feminismos
vão tentando tecer entre si uma grande teia de libertações.
Só que o sentimento de solidão
perdura. Porque ainda aprendemos e
interiorizamos tristemente que qualquer discordância é separação. Que a
feminista é chata e a gostosa é burra. Que se eu consegui algo é porque mereci,
a outra mulher não fez o suficiente. Que não fomos feitas para andar juntas.
Toda vez que uma mulher vê em outra
sua necessária concorrente, só porque é mulher, eu me sinto só, mesmo que não
seja eu. Toda vez que uma mulher deslegitima a dor de outra, porque não foi ela
que a sofreu, eu me sinto só, mesmo que também não seja minha dor. Toda vez que
uma mulher se declara feminista e por isso acha que pode ditar a luta de outra
mulher, eu me sinto só, mesmo que às vezes também seja eu.
Eu me sinto só, mas não quero estar
só. E tenho decidido não estar só. Se me diz o mundo que a mulher é competitiva
e desconfiada, chamo minhas amigas para um chopp. Quando me sussurram que ela-vai-roubar-seu-homem,
explico que o homem não é minha propriedade e sim um ser racional que pode pensar
sobre o assunto e chegar às conclusões dele.
Quando me dizem que minha luta é pouca, digo que ela será maior quanto
mais juntas estivermos. Por isso, toda vez, desde 2009, que me bate esse
sentimento desértico, lembro que o deserto é uma grande união de areias, e procuro
mais mãos para dar e seguir a caminhada.
Decidir não estar só faz toda a diferença.