sábado, 30 de abril de 2016

Chá de mim

Ontem fiz um chá antes de dormir – como o Rio me parece menos absurdo quando posso tomar um chá sem maiores derretimentos. Lia Kundera enquanto mergulhava distraidamente, o sachê na água quase fervente - como a vida me parece menos absurda quando posso estar e não estar dentro de mim.
Como que em um desenho animado infantil, entrou pelos meus pensamentos um som melodicamente imprevisto, tomando o espaço das palavras que ali andavam. Era um farfalhar tão suave, quase não audível, como que vindo de lonjuras e meio perdido por caminhos. Mas também, no quase silêncio do prédio adormecido, era palpavelmente próximo, quase tangível. Fechei os olhos para melhor saboreá-lo. Embora não entendesse ainda de onde vinha, sentia naquele leve encontrar de um não-sei-o-quê com outra-coisa uma fricção entre o que eu sentia e o que entendia. O mundo que me chegava e aquele que eu explicava. As tantas coisas incompreendidas e minha pequena gama de aceitações. Roçavam-se, tênue e bruscamente, a vida que eu acreditava viver e o punhado de fatos que outros chamariam de meu cotidiano. Mal chegava a ser um som, provavelmente era um ruído, não seria captado por microfones, se os houvesse, não seria reproduzível nem por uma orquestra de pulgas. No entanto, confortava-me, não como um entendimento – esses raramente confortam – mas como um afago. A ideia vaga que o esbarrar infindo entre os universos que invento e transito é também uma valsa suave.
Enfim, procurei em volta a origem das minhas explicações desexplicadas. Busquei em volta uma mariposa que batesse largamente asas ou uma fresta de vento que enganasse o vidro. Mas não, era meu próprio punho, arrastando o sachê nas paredes da xícara cada vez que o retirava e devolvia à água - já agora morna, que gerava o quase imperceptível e tão estrondoso som. Mirei minha mão descrente, como se fosse a mão de mais alguém que tivesse se introduzido, sorrateira, na madrugada. Ela continuava sem movimento contínuo como se me sorrisse (será que mãos sorriem?)

Seja como for, sorri eu, vagamente descobrindo como minhas mais imprevistas epifanias estão sempre no inalcançável alcance das minhas próprias mãos. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016