Ontem
fiz um chá antes de dormir – como o Rio me parece menos absurdo quando posso
tomar um chá sem maiores derretimentos. Lia Kundera enquanto mergulhava distraidamente,
o sachê na água quase fervente - como a vida me parece menos absurda quando
posso estar e não estar dentro de mim.
Como
que em um desenho animado infantil, entrou pelos meus pensamentos um som
melodicamente imprevisto, tomando o espaço das palavras que ali andavam. Era um
farfalhar tão suave, quase não audível, como que vindo de lonjuras e meio
perdido por caminhos. Mas também, no quase silêncio do prédio adormecido, era
palpavelmente próximo, quase tangível. Fechei os olhos para melhor saboreá-lo.
Embora não entendesse ainda de onde vinha, sentia naquele leve encontrar de um
não-sei-o-quê com outra-coisa uma fricção entre o que eu sentia e o que
entendia. O mundo que me chegava e aquele que eu explicava. As tantas coisas
incompreendidas e minha pequena gama de aceitações. Roçavam-se, tênue e
bruscamente, a vida que eu acreditava viver e o punhado de fatos que outros
chamariam de meu cotidiano. Mal chegava a ser um som, provavelmente era um
ruído, não seria captado por microfones, se os houvesse, não seria reproduzível
nem por uma orquestra de pulgas. No entanto, confortava-me, não como um
entendimento – esses raramente confortam – mas como um afago. A ideia vaga que
o esbarrar infindo entre os universos que invento e transito é também uma valsa
suave.
Enfim,
procurei em volta a origem das minhas explicações desexplicadas. Busquei em
volta uma mariposa que batesse largamente asas ou uma fresta de vento que
enganasse o vidro. Mas não, era meu próprio punho, arrastando o sachê nas
paredes da xícara cada vez que o retirava e devolvia à água - já agora morna,
que gerava o quase imperceptível e tão estrondoso som. Mirei minha mão
descrente, como se fosse a mão de mais alguém que tivesse se introduzido,
sorrateira, na madrugada. Ela continuava sem movimento contínuo como se me
sorrisse (será que mãos sorriem?)
Seja
como for, sorri eu, vagamente descobrindo como minhas mais imprevistas
epifanias estão sempre no inalcançável alcance das minhas próprias mãos.