Cheguei revoltada
ao Centro da cidade para encontrar um amigo. No metrô, a velha história do
homem-ao-lado-no-assento-que-perdeu-alguma-coisa-muito-importante-no-bolso.
Essas grifes de hoje em dia que fazem bolsos maiores que mochilões de viagem,
coitados dos moços, né, gente. Meu amigo não entendeu. Expliquei que podia
servir para passar a mão em alguma mulher perto, que eu já tinha tido alguns
problemas com isso, ou também uma forma "discreta" de masturbar-se em
público.
- Espera! Você já
teve problemas com isso?
- Ô, nem te conto.
Inclusive teve uma vez que...
- Não, mas então
você já foi assediada no ônibus? Que ônibus? Que metrô?
Encarei ele, meio
incrédula. Ele sabe que pego metrô e ônibus basicamente todos os dias da minha
vida. E que são nesses metrô e ônibus que temos relatos e estatísticas e mesmo
políticas públicas para coibir o assédio contra mulheres. Convenhamos, não é
uma matemática difícil.
- Os que pego
todo dia?
- Sério, cara? Tipo,
então, para vir aqui para o centro? É o mesmo que minha mãe, minha namorada
pegam. Será que...? Não quero nem pensar nisso.
Não aguentei e
perguntei:
- Você conhece as
estatísticas. Com que mulheres você achou que isso acontecesse?
- Não sei. Com outras.
Ah, claro. As
outras, sem rosto e sem nome. As outras, que necessariamente não conhecemos.
Quão úteis nos são para podermos fingir que aquela violência não nos atinge. As
outras, as que compõe estatísticas, que moram longe da gente, de quem podemos
nos compadecer sem grandes incômodos.
Que outras
distantes mulheres (teve aquelas em São Paulo, né?) sofram assédio em
transportes públicos, é revoltante e errado, mas posso dormir com isso. Mas que
"minha mãe", "minha namorada" e "minha amiga"
encarem isso diariamente no caminho do estágio, trabalho ou faculdade, não, não
dá.
Mas não escrevo
isso (só) para falar da cegueira do meu amigo homem-cis-branco-hétero que nem
pega lá muito metrô, essa até chamei bastante atenção pessoalmente.
Fiquei pensando
depois porque eu, sua mãe, sua namorada, nunca lhe tínhamos falado de nada
disso. Por que não falamos do assédio cotidiano que vivemos?
Porque nunca
aprendemos a chamar de assédio.
Assédio é algo
grave que beira o estupro, provavelmente deve incluir umas ameaças explícitas e
órgãos genitais pra fora. Essa mão apoiada na nossa perna, pura distração. Esse
tombo acidental com a mão di-re-ta-men-te no nosso seio, mas ora, como eu ia
saber onde ia cair? Esse segurar na cintura como se a gente fosse parte da
estrutura física do transporte, é que eu ia desequilibrar, moça. Claro.
Em qualquer roda de
mulheres que você sente e puxe o tema com um "Meninas, olha o que acabou
de me acontecer no ônibus." vão pipocar histórias de olhares fixados em
peitos por mais estações que as esquecidas de construir pelo governo estatal,
gestos obscenos, cantadas pra lá de inconvenientes, encoxadas, homens que
sem-querer-dormindo deitam no colo e começam a se refestelar por ali, carinhos
no cabelo, cheiradas, mãos por baixo da saia, a lista é desesperadoramente infinda.
Mas se na mesma
roda se pergunta "Quem já sofreu assédio em um transporte público?"
se uma disser que sim já é quase vitória.
Porque aprender a
chamar de assédio é romper- um pouco- o ciclo da violência. É romper a
dominação que te faz acreditar que, de alguma forma bizarra e inexplicável,
você mereceu. Que aquela saia, afinal, era curta. Ou era tarde. Ou seu cabelo
podia estar preso. Ou você podia estar de burca e ser uma faquir que não ocupa
mais espaço.
E chamar de assédio
é poder falar sobre. Mas também, é dever falar sobre. É saber-se parte das
estatísticas. É assumir-se parte das estatísticas e começar a lutar contra
elas.
Lembro a primeira
vez que me dei conta que sofria um assédio.
Estava de saia no
metrô. Nem estava muito cheio. Estava em pé, lendo. Um homem parou ao meu lado
e colocou sua mochila no chão, rente à minha perna. Um minuto depois, mudou de
ideia e pegou a mochila, para isso tendo que encostar um pouco mais que o
necessário na minha coxa. Mas não achei que era um problema. Segui lendo. Ele
largou a mochila de novo. E repetiu o ritual de erguê-la com apoio da minha
perna. Pensei vagamente que eu devia ter vindo com uma saia maior. Pela
terceira vez ele colocou a mochila no chão. Pela terceira vez subiu passando a
mão na minha coxa. Ainda assim não achava que era assédio, só achava que não
queria estar mais perto daquele homem. Afastei-me e prossegui a leitura. Não vi
ele se aproximar e colocar novamente a mochila no chão, só senti ele erguê-la
demoradamente, agora levantando também minha saia. Entendi, assustada, dei um
pulo para o lado e o encarei, lívida. Ele me disse, cínico, "minha mochila
tinha caído". A porta abriu e eu saltei sem olhar qual era a estação. Eu
não tinha conseguido dizer nenhuma palavra. Ainda da plataforma, olhando o
vagão, vi ele se aproximar de outra mulher.
Não sei quanto
tempo fiquei parada naquela estação, odiando minha saia, odiando meu silêncio,
em suma, odiando-me. Saltei do metrô e fiz o resto do caminho a pé. Bendita
seja toda caminhada que me organiza os pensamentos. Não era culpa minha, nem da
minha saia, a culpa era dele e aquilo era um assédio. E eu não mais me
calaria.
Desde então,
aprendi a chamar de assédio o que é assédio. Mesmo que exista uma gradação da
gravidade, são todos parte da mesma lógica de disponibilidade do corpo
feminino, da mulher como objeto público acessível para quem quiser esticar a
mão. Chamar
de assédio o que é assédio é dizer para a mulher: você não precisa passar por
isso. E para o homem: atenção, você pode estar fazendo alguma mulher passar por
isso. (porque, sem hipocrisia, se 3 em cada 4 jovens brasileiras já foram
assediadas no transporte público, e não acredito em uma pequena seita com superpoderes
que se multiplica nos metrôs brasileiros, os homens que fazem isso também estão
muito perto da gente). Chamar de assédio o que é assédio é fazer existir para
poder conscientizar e lutar contra.
Assédio é o que
acontece com as “outras mulheres”. Mas em uma sociedade tão marcada por
diferenciações de gênero, de alguma forma, somos todas outras, enquanto
mulheres.
Porque mulheres.