sexta-feira, 22 de maio de 2015

As mulheres das estatísticas (também) somos nós: aprendendo a dizer assédio

Cheguei revoltada ao Centro da cidade para encontrar um amigo. No metrô, a velha história do homem-ao-lado-no-assento-que-perdeu-alguma-coisa-muito-importante-no-bolso. Essas grifes de hoje em dia que fazem bolsos maiores que mochilões de viagem, coitados dos moços, né, gente. Meu amigo não entendeu. Expliquei que podia servir para passar a mão em alguma mulher perto, que eu já tinha tido alguns problemas com isso, ou também uma forma "discreta" de masturbar-se em público. 
- Espera! Você já teve problemas com isso? 
- Ô, nem te conto. Inclusive teve uma vez que... 

- Não, mas então você já foi assediada no ônibus? Que ônibus? Que metrô?
Encarei ele, meio incrédula. Ele sabe que pego metrô e ônibus basicamente todos os dias da minha vida. E que são nesses metrô e ônibus que temos relatos e estatísticas e mesmo políticas públicas para coibir o assédio contra mulheres. Convenhamos, não é uma matemática difícil. 
 - Os que pego todo dia?
- Sério, cara? Tipo, então, para vir aqui para o centro? É o mesmo que minha mãe, minha namorada pegam. Será que...? Não quero nem pensar nisso. 
Não aguentei e perguntei:
- Você conhece as estatísticas. Com que mulheres você achou que isso acontecesse?
- Não sei. Com outras. 
Ah, claro. As outras, sem rosto e sem nome. As outras, que necessariamente não conhecemos. Quão úteis nos são para podermos fingir que aquela violência não nos atinge. As outras, as que compõe estatísticas, que moram longe da gente, de quem podemos nos compadecer sem grandes incômodos. 
Que outras distantes mulheres (teve aquelas em São Paulo, né?) sofram assédio em transportes públicos, é revoltante e errado, mas posso dormir com isso. Mas que "minha mãe", "minha namorada" e "minha amiga" encarem isso diariamente no caminho do estágio, trabalho ou faculdade, não, não dá.
Mas não escrevo isso (só) para falar da cegueira do meu amigo homem-cis-branco-hétero que nem pega lá muito metrô, essa até chamei bastante atenção pessoalmente. 
Fiquei pensando depois porque eu, sua mãe, sua namorada, nunca lhe tínhamos falado de nada disso. Por que não falamos do assédio cotidiano que vivemos? 
Porque nunca aprendemos a chamar de assédio. 
Assédio é algo grave que beira o estupro, provavelmente deve incluir umas ameaças explícitas e órgãos genitais pra fora. Essa mão apoiada na nossa perna, pura distração. Esse tombo acidental com a mão di-re-ta-men-te no nosso seio, mas ora, como eu ia saber onde ia cair? Esse segurar na cintura como se a gente fosse parte da estrutura física do transporte, é que eu ia desequilibrar, moça. Claro. 
Em qualquer roda de mulheres que você sente e puxe o tema com um "Meninas, olha o que acabou de me acontecer no ônibus." vão pipocar histórias de olhares fixados em peitos por mais estações que as esquecidas de construir pelo governo estatal, gestos obscenos, cantadas pra lá de inconvenientes, encoxadas, homens que sem-querer-dormindo deitam no colo e começam a se refestelar por ali, carinhos no cabelo, cheiradas, mãos por baixo da saia, a lista é desesperadoramente infinda. 
Mas se na mesma roda se pergunta "Quem já sofreu assédio em um transporte público?" se uma disser que sim já é quase vitória. 
Porque aprender a chamar de assédio é romper- um pouco- o ciclo da violência. É romper a dominação que te faz acreditar que, de alguma forma bizarra e inexplicável, você mereceu. Que aquela saia, afinal, era curta. Ou era tarde. Ou seu cabelo podia estar preso. Ou você podia estar de burca e ser uma faquir que não ocupa mais espaço.
E chamar de assédio é poder falar sobre. Mas também, é dever falar sobre. É saber-se parte das estatísticas. É assumir-se parte das estatísticas e começar a lutar contra elas. 
Lembro a primeira vez que me dei conta que sofria um assédio. 

Estava de saia no metrô. Nem estava muito cheio. Estava em pé, lendo. Um homem parou ao meu lado e colocou sua mochila no chão, rente à minha perna. Um minuto depois, mudou de ideia e pegou a mochila, para isso tendo que encostar um pouco mais que o necessário na minha coxa. Mas não achei que era um problema. Segui lendo. Ele largou a mochila de novo. E repetiu o ritual de erguê-la com apoio da minha perna. Pensei vagamente que eu devia ter vindo com uma saia maior. Pela terceira vez ele colocou a mochila no chão. Pela terceira vez subiu passando a mão na minha coxa. Ainda assim não achava que era assédio, só achava que não queria estar mais perto daquele homem. Afastei-me e prossegui a leitura. Não vi ele se aproximar e colocar novamente a mochila no chão, só senti ele erguê-la demoradamente, agora levantando também minha saia. Entendi, assustada, dei um pulo para o lado e o encarei, lívida. Ele me disse, cínico, "minha mochila tinha caído". A porta abriu e eu saltei sem olhar qual era a estação. Eu não tinha conseguido dizer nenhuma palavra. Ainda da plataforma, olhando o vagão, vi ele se aproximar de outra mulher. 
Não sei quanto tempo fiquei parada naquela estação, odiando minha saia, odiando meu silêncio, em suma, odiando-me. Saltei do metrô e fiz o resto do caminho a pé. Bendita seja toda caminhada que me organiza os pensamentos. Não era culpa minha, nem da minha saia, a culpa era dele e aquilo era um assédio. E eu não mais me calaria. 
Desde então, aprendi a chamar de assédio o que é assédio. Mesmo que exista uma gradação da gravidade, são todos parte da mesma lógica de disponibilidade do corpo feminino, da mulher como objeto público acessível para quem quiser esticar a mão. Chamar de assédio o que é assédio é dizer para a mulher: você não precisa passar por isso. E para o homem: atenção, você pode estar fazendo alguma mulher passar por isso. (porque, sem hipocrisia, se 3 em cada 4 jovens brasileiras já foram assediadas no transporte público, e não acredito em uma pequena seita com superpoderes que se multiplica nos metrôs brasileiros, os homens que fazem isso também estão muito perto da gente). Chamar de assédio o que é assédio é fazer existir para poder conscientizar e lutar contra.
Assédio é o que acontece com as “outras mulheres”. Mas em uma sociedade tão marcada por diferenciações de gênero, de alguma forma, somos todas outras, enquanto mulheres.
Porque mulheres.


terça-feira, 5 de maio de 2015

Desventuras do leitor digital

Depois de anos de campanha fervorosa de amigos entusiastas, aproveitei meu aniversário e uma promoção para me render aos tais leitores digitais. Chegou rápido pelo correio (tudo sempre rápido quando estamos nesse campo semântico). Logo no primeiro dia que o incorporei a minha rotina, uma amiga sincera resumiu bem a situação: - É ótimo, mas não combina com você. Verdade, mas respondi com igual honestidade: - Eu sei, mas combina com minha coluna. 
Para tentar resolver a equação entre eu e minhas costas (não ter livros na mochila cotidiana não era uma opção, só pra constar), resolvi fazer a concessão digital para os livros teóricos, que cada vez são mais encontráveis em e-books mesmo, e para as séries de ficção, que-pelos-sete-deuses-e-pelo-senhor-soberano, como são pesadas. Minha literatura de degustação, os autores-amigos que preciso ver na estante e dizer bom-dia para ter uma boa rotina e folhear ao acaso no fim de semana para saber como andam, esses seguirão sempre impressos, com bordas dobradas nas passagens marcantes, mancha de café e uma carta esquecida no meio. 
Isto tudo posto e exposto, fui vivenciar minhas primeiras aventuras como leitora digital. Dias de semana, sou uma leitora em movimento. Para conciliar as mil atividades e a necessidade de letras, resolvi fazer do caótico transporte urbano minha sala de leitura. Metrô, barca, ônibus, espremida no cantinho do lado do trocador, sentada nos degraus do 1001, na eterna fila do ônibus do metrô, parada morrendo de claustrofobia entre as estações da Carioca e da Cinelândia, e por aí vai. Confesso que, nessas condições, senti menos falta das páginas escritas que imaginava. O leitor digital é mais fácil de segurar, mais leve, mais ajeitado para leitura in extremis. Só que houve uma perda imprevista, e irreparável. 
Não sei mais as reações às minhas capas.

Antes, e sempre, divertia-me com os olhares tentando decifrar que-livro-aquela-guria-está-lendo-ali-no-canto. Olhares de aprovação quando identificavam o autor, curiosidade quando não. Um profundo desalento de um senhor quando me viu com Alexandra Kolontai. Suspirou, como se dissesse, "tão simpática e lendo uma bolchevique". Vez ou outra, sorte!, se começava uma conversa - Não acredito, você tem o volume final de Duna, sempre procurei. - Estão relançando, as Bene-Gesserit estão incríveis nesse. Ou ainda um dia que tive uma crise irrefreável de riso com "A Sereia do Rocha", da Leila Oli, e mostrei a capa para o vagão de metrô que me olhava, curioso. 
Com meu super-leve-legal-leitor-digital, nada mais disso. Por mais que para mim siga sendo um portal de infinitos, tenho em minha mão um objeto padrão. Impessoal. 
Hoje mesmo, li uma passagem espirituosa e comecei a rir no ônibus matutino. Uma simpática senhora me sorriu e buscou ver do que eu ria. Olhou o objeto digital dele só podendo inferir a marca - única coisa nunca escondida no nosso tempo-, virou-se para frente e seguimos a viagem. 
Senti como se de repente eu jogasse uma cortina disforme cobrindo todos os rostos e nomes e imagens e cores dos autores e autoras que formaram e formam meus óculos de ver o mundo. Como se eu relegasse todos a um anonimato digital, sem rosto, sem particularidades, só chips.
Desci do ônibus sentindo-me um pouco mais sozinha. 
Desculpa, querida coluna, mas vamos ter que renegociar.