Depois de anos de
campanha fervorosa de amigos entusiastas, aproveitei meu aniversário e uma
promoção para me render aos tais leitores digitais. Chegou rápido pelo correio
(tudo sempre rápido quando estamos nesse campo semântico). Logo no primeiro dia
que o incorporei a minha rotina, uma amiga sincera resumiu bem a
situação: - É ótimo, mas não combina com você. Verdade, mas respondi com igual
honestidade: - Eu sei, mas combina com minha coluna.
Para tentar resolver a equação entre
eu e minhas costas (não ter livros na mochila cotidiana não era uma opção, só
pra constar), resolvi fazer a concessão digital para os livros teóricos, que
cada vez são mais encontráveis em e-books mesmo, e para as séries de ficção,
que-pelos-sete-deuses-e-pelo-senhor-soberano, como são pesadas. Minha
literatura de degustação, os autores-amigos que preciso ver na estante e dizer
bom-dia para ter uma boa rotina e folhear ao acaso no fim de semana para saber
como andam, esses seguirão sempre impressos, com bordas dobradas nas passagens
marcantes, mancha de café e uma carta esquecida no meio.
Isto tudo posto e exposto, fui
vivenciar minhas primeiras aventuras como leitora digital. Dias de semana, sou
uma leitora em movimento. Para conciliar as mil atividades e a necessidade de
letras, resolvi fazer do caótico transporte urbano minha sala de leitura.
Metrô, barca, ônibus, espremida no cantinho do lado do trocador, sentada nos
degraus do 1001, na eterna fila do ônibus do metrô, parada morrendo de
claustrofobia entre as estações da Carioca e da Cinelândia, e por aí vai.
Confesso que, nessas condições, senti menos falta das páginas escritas que
imaginava. O leitor digital é mais fácil de segurar, mais leve, mais ajeitado
para leitura in extremis. Só que houve uma perda imprevista, e
irreparável.
Não sei mais as reações às minhas
capas.
Antes, e sempre, divertia-me com os
olhares tentando decifrar que-livro-aquela-guria-está-lendo-ali-no-canto.
Olhares de aprovação quando identificavam o autor, curiosidade quando não. Um
profundo desalento de um senhor quando me viu com Alexandra Kolontai. Suspirou,
como se dissesse, "tão simpática e lendo uma bolchevique". Vez ou
outra, sorte!, se começava uma conversa - Não acredito, você tem o volume final
de Duna, sempre procurei. - Estão relançando, as Bene-Gesserit estão incríveis
nesse. Ou ainda um dia que tive uma crise irrefreável de riso com "A
Sereia do Rocha", da Leila Oli, e mostrei a capa para o vagão de metrô que
me olhava, curioso.
Com meu
super-leve-legal-leitor-digital, nada mais disso. Por mais que para mim siga
sendo um portal de infinitos, tenho em minha mão um objeto padrão.
Impessoal.
Hoje mesmo, li uma passagem
espirituosa e comecei a rir no ônibus matutino. Uma simpática senhora me sorriu
e buscou ver do que eu ria. Olhou o objeto digital dele só podendo inferir a
marca - única coisa nunca escondida no nosso tempo-, virou-se para frente e
seguimos a viagem.
Senti como se de repente eu jogasse
uma cortina disforme cobrindo todos os rostos e nomes e imagens e cores dos
autores e autoras que formaram e formam meus óculos de ver o mundo. Como se eu
relegasse todos a um anonimato digital, sem rosto, sem particularidades, só
chips.
Desci do ônibus sentindo-me um pouco mais sozinha.
Desculpa, querida coluna, mas vamos
ter que renegociar.
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