quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Sobre mamãe e abacaxis


Quando eu tinha algo como seis anos, vi um casal de homens em uma novela (bem pioneira, aliás). Corri até minha mãe e perguntei “Mãe, pode?”. Ela me respondeu, com muita naturalidade: “Claro. Homem pode namorar mulher e pode namorar homem. Mulher pode namorar homem e pode namorar mulher. A mamãe namora os dois. Quando você crescer vai poder namorar quem você quiser. Se você chegar em casa com um abacaxi a mamãe só vai dizer: cuidado, minha flor, espeta”.
Não sei ao certo o quanto entendi disso, mas o suficiente para não estranhar muito a primeira vez que acordei e tinha uma mulher dividindo a cama de casal com minha mãe. De fato, pensei que seria bem divertido ter mais uma pessoa em casa para brincar. E foi.
Desde que me entendo por gente minha mãe só teve companheiras. Alguns relacionamentos importantes que também me constituíram como pessoa, outros não tanto. Esse relato terminaria aqui se não fosse um incômodo detalhe: o mundo. Um mundo a quem não interessava que eu era uma criança feliz, crescendo consideravelmente bem e saudável. Um mundo a quem não interessava que minha mãe era uma profissional competente e dedicada. Um mundo que só tinha a nos dizer: não está certo. Sobretudo no interior do país. Sobretudo nos anos 1990.
Embora conheçamos o preconceito por seus raros momentos mais declarados, a verdade é que ele é bem sub-reptício. São olhares enviesados, desconfianças, afastamentos inexplicáveis, tudo cercado por um muro de silêncio tão inexpugnável quanto mudo. Assim, pessoas desapareciam de nossas vidas, promoções eram negadas a minha mãe, convites para festas não chegavam e a gente sabia e não sabia os porquês. Lembro de duas situações explícitas. Uma conversa engraçada com uma amiguinha de colégio, lá por uns oito anos de idade. Ela tentava me explicar porque eu podia dormir na casa dela, mas ela não podia dormir na minha. Baixou a voz e disse, enfática “Sua mãe, né?” provavelmente repetindo o tom que usara alguém de sua família. Fiquei olhando algum tempo sem entender porque minha mãe seria um problema para alguém dormir. Ela nem roncava. Ao contrário, o cheiro do seu colo sempre tinha me parecido dos melhores soníferos do universo. Outra vez, mais tarde, ouvi alguém falando que eu morava na “casa das três sapatões”. Já, então, entendendo um pouco mais sobre preconceitos, ainda passei algum tempo confusa na matemática pensando quem seria a terceira. Do alto dos meus onze anos estava definitivamente mais interessada em pular amarelinha que definir minha sexualidade.
Se por um lado o mundo podia – e pode – ser assim cruel, não posso reclamar nem um pouco da minha vida. A cidade nos vedava sem pudores entradas, mas criávamos para nós uma casa-quartel-general de tudo que de alguma forma também não se adequava ou não queria se adequar. Ou seja, gente muito mais verdadeira e divertida.
Cresci, assim, cercada das pessoas mais sinceras e sensíveis que posso imaginar, as que pulavam muros ou derrubavam muros diariamente. Não deixa de ser uma peneira importante para gente para se ter perto. Conhecer a intolerância cedo também é conhecer a capacidade humana de superá-la. Penso aqui nas várias pessoas que, por mais que tenham tido como primeira reação dar um passo atrás para uma família que ainda não entendiam, deram depois dois ou mais passos à frente. E estão até hoje por perto.
Mas cresci também vendo minha mãe sofrer por todos os lados as consequências desse preconceito dito e não dito. A solidão, as dificuldades profissionais, as cobranças maiores da própria família (sendo mulher, mãe solteira e lésbica, não podia ser nada menos que ótima para ser aceita). Tudo isso que faz mal ao corpo, à cabeça, à alma. Por isso a admiro ainda mais, em meio a estes trancos e barrancos todos, por jamais ter desistido. Nem profissionalmente, nem desistido de acreditar na possibilidade das pessoas romperem seus pré julgamentos, nem, sobretudo, na possibilidade de amar. Quando penso nela hoje feliz com sua companheira (agora até juridicamente reconhecida, que a gente nem pensava ser possível uns anos atrás), tendo adotado uma cachorra e fazendo planos para fazer quebra-cabeças na aposentadoria, e penso em todos os percalços até aqui, e que persistem, só consigo pensar na palavra coragem.
É preciso muita força para seguir amando em um mundo tão despreparado para o amor. Isso, felizmente, ela me ensinou desde cedo e em todos os sentidos que posso imaginar: amar. Muito.
Ah, e se para alguém isso interessa – e não acho que era para interessar – meu desejo sempre se orientou para homens. Ou, talvez, aqui minha mãe me corrigisse dizendo que tenho mais um gosto para abacaxis caprichados nos espinhos. É até estranho escrever isso nesse relato, mas como é uma pergunta que sempre ouço, acho importante bater na tecla. Não sou especialista nem em psicologia nem em genética, mas tenho a impressão que se orientação sexual fosse uma herança de dna ou aprendida pela observação estrita não teria nenhum caso de filhos homossexuais de casais heterossexuais. Isso, bom, a empiria já desmente por mim. Não sei porque teria que funcionar na via contrária, então. Mas uma coisa que definitivamente aprendi é que os preconceitos não operam por vias lógicas. Só por vias de ódio mesmo.
Contra esse ódio, contra essa incompreensão toda, felizmente vi uma vitória constante (mesmo que às vezes uma vitória exausta e por poucos décimos) do continuar amando. Obrigada por isso, mãe.

Texto publicado originalmente no site Mundo Delash em outubro de 2016, momentaneamente indisponível. 

Um comentário:

  1. Continuo dizendo a mesma coisa:
    Cuidado com os abacaxis !
    Beijo e todo o amor do mundo.

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