Voltava para
casa de metrô um tanto ou quanto mergulhada no –enfim- capítulo final daquele
livro que há milênios adiava o término, quanto notou que era observada. Pares
de olhos aqui e acolá no vagão lhe vigiavam alternadamente. Alguns, intrigados,
como que perguntassem “mas que fazes aqui?”, outros, repressores, como se já
afirmassem que não devia ali estar. Ainda uns terceiros sorriam, marotamente,
como que dissessem “já que está aqui...”.
Olhou de si
para o entorno tentando entender o motivo das mensagens contraditórias. Não
vestia nada provocante (mas ainda que vestisse, não se justificavam), não era o
livro nenhum título chocante (mas ainda que fosse, não se justificavam), não
fazia absolutamente nada de fora do esperado de alguém que visitara uma amiga
sábado à noite e voltava para casa de metrô (mas ainda que fizesse, não se
justificavam).
Prestando mais
atenção ao vagão, no entanto, entendeu seu grande “pecado”. Ser a única mulher
do último metrô de um sábado à noite. Ser um corpo feminino – por definição,
algo a ser resguardado, senão obviamente disponível – locomovendo-se livremente
pela cidade. O incômodo lhe aumentou
quando pensou no que conhecidas vozes lhe diriam se algo ali lhe acontecesse. “Mas
você estava sozinha?” “Mas era o último metrô” “Mas você estava de vermelho”.
Foi invadida por aquela irracional e conhecida sensação de culpa pelo fato de
ser uma mulher, ter um corpo e querer viver a sua cidade.
Chegou à sua
estação. De seu vagão, e de outros, só homens saltaram. Subiram todos juntos as
escadas rolantes já desligadas. Os olhares se multiplicaram, ou assim a ela
pareceram. A saída principal estava fechada. Teria de sair pela rua lateral, consideravelmente
mais deserta. Não sabia se preferia andar rápido e ganhar a rua antes de todos
ou diminuir o passo e sair por último, por isso alternava velocidades e começou
a jurar que uma dupla lhe seguia o ritmo descompassado.
Por tudo isso,
quando saiu enfim da estação, sentiu um franco alívio ao encontrar, na rua
deserta, salvo pelos que saiam do metrô, um policial. Não que se sentisse muito
à vontade com policiais, algumas lembranças definitivamente não eram boas, mas
tão ensinada fora a associá-los à segurança que em momentos assim esquecia que
também deles se deveria resguardar. Seguiu andando a ele próxima enquanto se dispersavam
para um lado e outro todos os que saiam do metrô.
Quando, de
repente e sem qualquer aviso, o policial parou um homem que vinha andando na
direção contrária à dela, e começou a questioná-lo sobre o que fazia ele ali.
Ele mal tentara responder quando, de novo sem qualquer justificativa, começou o policial
a revistá-lo ostensivamente.
O crime para
punição assim sumária, para ser antes suspeito que "pessoa-a-andar-na-rua"? Ser
um corpo negro andando à noite pela Zona Sul do Rio.
Nada achando em
sua revista, o policial deixou que o homem seguisse seu percurso. E apressou-se
ela no dela. Não era a sua cidade. E menos ainda a cidade daquele homem. O
corpo feminino sempre alvo. O corpo negro sempre suspeito.
A cidade é para
alguns. E em algumas horas.
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