domingo, 22 de março de 2015

Corpos alvo e Corpos suspeitos - ou de quem é a cidade sábado à noite?

Voltava para casa de metrô um tanto ou quanto mergulhada no –enfim- capítulo final daquele livro que há milênios adiava o término, quanto notou que era observada. Pares de olhos aqui e acolá no vagão lhe vigiavam alternadamente. Alguns, intrigados, como que perguntassem “mas que fazes aqui?”, outros, repressores, como se já afirmassem que não devia ali estar. Ainda uns terceiros sorriam, marotamente, como que dissessem “já que está aqui...”.

Olhou de si para o entorno tentando entender o motivo das mensagens contraditórias. Não vestia nada provocante (mas ainda que vestisse, não se justificavam), não era o livro nenhum título chocante (mas ainda que fosse, não se justificavam), não fazia absolutamente nada de fora do esperado de alguém que visitara uma amiga sábado à noite e voltava para casa de metrô (mas ainda que fizesse, não se justificavam).

Prestando mais atenção ao vagão, no entanto, entendeu seu grande “pecado”. Ser a única mulher do último metrô de um sábado à noite. Ser um corpo feminino – por definição, algo a ser resguardado, senão obviamente disponível – locomovendo-se livremente pela cidade.  O incômodo lhe aumentou quando pensou no que conhecidas vozes lhe diriam se algo ali lhe acontecesse. “Mas você estava sozinha?” “Mas era o último metrô” “Mas você estava de vermelho”. Foi invadida por aquela irracional e conhecida sensação de culpa pelo fato de ser uma mulher, ter um corpo e querer viver a sua cidade.

Chegou à sua estação. De seu vagão, e de outros, só homens saltaram. Subiram todos juntos as escadas rolantes já desligadas. Os olhares se multiplicaram, ou assim a ela pareceram. A saída principal estava fechada. Teria de sair pela rua lateral, consideravelmente mais deserta. Não sabia se preferia andar rápido e ganhar a rua antes de todos ou diminuir o passo e sair por último, por isso alternava velocidades e começou a jurar que uma dupla lhe seguia o ritmo descompassado.

Por tudo isso, quando saiu enfim da estação, sentiu um franco alívio ao encontrar, na rua deserta, salvo pelos que saiam do metrô, um policial. Não que se sentisse muito à vontade com policiais, algumas lembranças definitivamente não eram boas, mas tão ensinada fora a associá-los à segurança que em momentos assim esquecia que também deles se deveria resguardar. Seguiu andando a ele próxima enquanto se dispersavam para um lado e outro todos os que saiam do metrô.

Quando, de repente e sem qualquer aviso, o policial parou um homem que vinha andando na direção contrária à dela, e começou a questioná-lo sobre o que fazia ele ali. Ele mal tentara responder quando, de novo sem qualquer justificativa, começou o policial a revistá-lo ostensivamente.

O crime para punição assim sumária, para ser antes suspeito que "pessoa-a-andar-na-rua"? Ser um corpo negro andando à noite pela Zona Sul do Rio.

Nada achando em sua revista, o policial deixou que o homem seguisse seu percurso. E apressou-se ela no dela. Não era a sua cidade. E menos ainda a cidade daquele homem. O corpo feminino sempre alvo. O corpo negro sempre suspeito.


A cidade é para alguns. E em algumas horas. 

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