quarta-feira, 25 de março de 2015

"Um sentimento incômodo de solidão"

Essa piranha só quer roubar meu namorado. Mas também, olha o short, não se dá o respeito. Feminista só pode ser à toa, não tem um tanque de roupa pra lavar? Tá só querendo aparecer com essa história vitimista. Não confio em mulher metida a gostosa. Tadinha, ela é manipulada. Eu sou mais feminista que você.

Começo esse texto com um profundo suspiro. Não imagino outra forma de começar. Em coisa de duas semanas ouvi ou presenciei todas as situações acima & outras. Justamente em março. Justamente nas semanas em que vejo auditórios se encherem para falar de feminismos. Todas tão perto de mim que me deram certa claustrofobia. E lembraram certo deserto.

Quando eu fazia pesquisas históricas no Arquivo Nacional, lá nos idos de 2009 – e de repente me dou conta que já tem uns anos que estou nessas feminituras todas – encontrei um artigo do início dos anos 1980, cujo título jamais me saiu da memória: “Um sentimento incômodo de solidão”. Acho que nunca saiu da cabeça porque desde que comecei a me entender como feminista (e gente, que processo louco e lindo é esse de se descobrir tão vulnerável e tão potente ao mesmo tempo: saber-se alvo de tantas opressões mas, ao sabê-las ali, poder, enfim, procurar caminho de resisti-las) senti seguidas vezes essa recorrente solidão.

É uma solidão engraçada. Sinto ter ao meu lado metade da humanidade. E ninguém contra mim (não, homens, não os vejo como oponentes). E, ainda assim, me sinto só. Talvez seja porque esse diaxo dessa dominação simbólica realmente nos fez acreditar que somos inimigas, e que, mesmo quando nos reconhecemos como participantes de uma mesma luta, temos que competir. Talvez seja a violência incrível de acreditar que tanto eu quanto a mulher ao meu lado, de alguma forma, só existiremos na constância de uma presença masculina, pela qual temos que nos digladiar. Talvez seja porque interessa muito que nos acreditemos desunidas para que nada mude.

O texto da Irede Cardoso, aquele lá da década de 1980, falava das críticas de dentro e de fora do movimento feminista. Tem várias que acho muito válidas, até. O feminismo liberal já invisibilisou muitas causas, já deixou (quase todas as) mulheres de fora, já reproduziu muitas opressões. Tem pouco tempo que conseguiu olhar para si no espelho e perceber o quanto podia – ele mesmo – ser excludente. Daí descobriu-se podendo ser vários.  E agora muitos feminismos vão tentando tecer entre si uma grande teia de libertações.

Só que o sentimento de solidão perdura.  Porque ainda aprendemos e interiorizamos tristemente que qualquer discordância é separação. Que a feminista é chata e a gostosa é burra. Que se eu consegui algo é porque mereci, a outra mulher não fez o suficiente. Que não fomos feitas para andar juntas.

Toda vez que uma mulher vê em outra sua necessária concorrente, só porque é mulher, eu me sinto só, mesmo que não seja eu. Toda vez que uma mulher deslegitima a dor de outra, porque não foi ela que a sofreu, eu me sinto só, mesmo que também não seja minha dor. Toda vez que uma mulher se declara feminista e por isso acha que pode ditar a luta de outra mulher, eu me sinto só, mesmo que às vezes também seja eu.

Eu me sinto só, mas não quero estar só. E tenho decidido não estar só. Se me diz o mundo que a mulher é competitiva e desconfiada, chamo minhas amigas para um chopp. Quando me sussurram que ela-vai-roubar-seu-homem, explico que o homem não é minha propriedade e sim um ser racional que pode pensar sobre o assunto e chegar às conclusões dele.  Quando me dizem que minha luta é pouca, digo que ela será maior quanto mais juntas estivermos. Por isso, toda vez, desde 2009, que me bate esse sentimento desértico, lembro que o deserto é uma grande união de areias, e procuro mais mãos para dar e seguir a caminhada.

Decidir não estar só faz toda a diferença.







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