Acordou.
Mas não abriu os olhos. Despertava sempre agraciada por certa irrealidade. Uma
esperança! Talvez fosse ela também um pensamento, uma abstração. Um devaneio
doce de alguém já esquecido.
Paulo Sérgio Zerbatto jun/10 |
Bastou,
contudo, encarar o teto para se lembrar concreta. Irremediavelmente concreta.
Cada músculo declarando firmemente sua existência frente ao dia que se
avizinhava. Correu os olhos para as paredes brancas, pregos já sem quadros,
marcas de poeira onde ela bem sabia móveis. O pé errou o chão ao se levantar,
porque a cama já também era só uma lembrança no piso tanto usado, e nunca lhe
pareceu tão frio o velho e conhecido colchão. Andou pelo quarto desviando dos
móveis, que já não estavam senão em recordação, e fechou mais uma vez os olhos
para ver o lugar como já não mais era.
Quando
tornou a abri-los, porém, já não havia pés tocando o chão. Sem o tapete,
agora enrolado lá fora, desfizeram-se ante o contato amargo da madeira.
As mãos procuraram o apoio do armário, que já não mais se encontrava, e,
assustadas, recolheram-se para dentro do braço. Ana encarou-se, cortada e
desfeita. Mas não sentiu nisso agonia. Era como a reação óbvia que já esperava
por todas as faltas que sentia. Pior que ser mutilado é ter de continuar
vivendo com o membro amputado. Que já não mais lhe pertence. Com naturalidade
que lhe sumiram as pernas e braços, carentes de sentido naquele desconhecido
espaço. Se ainda houvesse seu cheiro, seria necessário um nariz, mas para que
mantê-lo se parecia em desuso? E, assim, ela se desfez lentamente, a cada
ausência evidenciada, sobrando os dois olhos que tudo observavam, sem
desespero. Com alívio.
Soube
então, com uma inexplicável certeza, que era desconstruída em toda a sua
incômoda realidade. Era desconstruída com tudo aquilo que fora seu e a deixara ou deixara ela de ser de tudo.
E agora podia despertar como uma calma e fascinante memória, da qual alguém um dia se
lembraria com um sutil prazer de fim de tarde. Ela não mais existia, e isso lhe
era familiar. Pode fechar os olhos. E só não ser.
(talvez, e isso é uma mera suposição, esse
alguém a recordá-la fosse até outra versão dela mesma, reconstruída em um novo
tempo ou outro lugar)
*Primeira
versão de 2011. E muitas Anas desconstruídas desde então.
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