quinta-feira, 23 de abril de 2015

Da minha banca de jornal, vejo o mundo

Gosto de bancas de jornal. Parecem-me pequenas ilhas de letra nos cotidianos tão falados, na cidade tão imagética. Discordando de Bandeira, às vezes a vida me chega pelos jornais, pelas manchetes, pelas palavras coloridas das revistas.
Por isso, aproveitando a calma do feriado para visitar uma amiga, sem hora marcada para chegada, sem correria para alcançar o ônibus, parei em frente a uma banca para apreciar o mundo sob aquela óptica, enquanto tomava um sol de outono carioca bem a calhar.(Claro que, para manter a magia, tenho que desviar discretamente da parede de revista de mulheres semi-nuas que toda banca que se preza precisa ter. Sempre me pergunto se algum policial teria coragem de prender uma mulher por "atentato violento ao pudor" se ela fizesse topless em solidariedade a todos aqueles seios livremente expostos.)

Mas todo meu bucolismo de leitura de manchetes se desfez com a seguinte inacreditável junção de vocábulos:


“VAGABUNDA, SÓ TE PEGO PARA VOCÊ LEMBRAR QUE AINDA É GENTE”
Personagem 1 e Personagem 2 se apaixonam.

Li, reli, trili, sim, era isso mesmo. Um personagem tal em alguma novela que não sei identificar tinha dito para uma mulher que somente o fato de ele “pegar” ela era o que a transformava em uma pessoa. E para alguém, em algum universo paralelo ao meu, isso significava que eles se apaixonavam. Ah, claro, como não amar o ser maravilhoso que me concede meu status de “gente”? Ele, tão incrível e condescendente, saiu do pedestal inalcançável de homem dele para vir aqui e me permitir existir um pouquinho. Claro, só se relacionada a ele, mas fora isso também já era querer muito. Vamos lá, meninas, quem não se apaixonaria?
Sigo minha leitura de manchetes, já achando menos graça no sol carioca e no feriado, quando vejo, ali, a uma coluna de revistas de distância, outra manchete, menos incrível, porque terrivelmente constante:

MORTA A PAULADAS FOI ASSASSINADA E ENTERRADA PELO MARIDO
Filhos denunciaram agressões constantes do pai.

Dei um passo atrás para poder observar a cena de ambas manchetes lado a lado. Pensei em tantos interlocutores que já me disseram que relacionar uma “frase pontual” ou uma “piadinha boba” com violência e assassinato era exagero. Será que eles também conseguiriam negar ali, uma do lado da outra?
Vamos gente, não preciso nem de falar em filosofia da linguagem aqui, o raciocínio é dolorosamente simplista:

1)                     Aprendi a vida inteira que sou eu, homem, que legitimo a existência dessa mulher.
2)                     Eu estou com uma companheira, eu concedo existência à ela.
3)                     Eu TENHO uma mulher. É MINHA.
4)                     Ela fez algo que não gostei.
5)                     Se eu que “fiz ela ser gente”, também é meu “direito” que não seja mais.

Enquanto afirmarmos para os homens que toda existência de suas companheiras deles depende, a eles pertence, não podemos nos assustar que diariamente surjam casos de assassinato e violência por motivos banais. Enquanto afirmamos para as mulheres que elas precisam estar em um relacionamento para serem legitimadas socialmente, que “mulher não deve ficar sozinha”, não podemos nos assustar que as mulheres se resignem à situações de violência continuada e extrema.
Não adianta querer mudar uma manchete sem repensar a outra. A banca de jornal, em seu exato microcosmo, não permite. 

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