terça-feira, 7 de abril de 2015

Guerra de cotovelos no ônibus de meia noite – ou aprendendo a me desencolher

Estava tão transcendente a meditação nas montanhas natais, que resolvi aproveitar até a última hora possível  o feriado & tentar escapar do trânsito da descida para essas paragens costeiras pegando o ônibus de meia-noite. A brilhante ideia era das mais óbvias: adormecer em Minas e acordar em terras cariocas às 6 da manhã, tomar um banho e começar a rotineira segunda-feira, como já tanto fiz em outras épocas dessas minhas travessias.
Vã esperança.
Quando saiu o ônibus de minha cidade, já ia quase cheio, mas ao meu lado ninguém havia. Tive mesmo uma ilusão de que na próxima parada, na cidade vizinha, entrasse um amigo querido com quem tenho um trato eterno de poltronas de ônibus. Sabendo ele que, sempre que posso, compro a 13 – número da sorte, começou a comprar a 14, para, quando o universo estiver de acordo e o acaso nos der sorte, seguirmos proseando serra abaixo ou serra acima.
Passando da cidade dele, perdida a esperança de perder o sono com conversa e colo amigos, e seguindo vazio o lugar ao lado, comecei a acalentar expectativas de que tivesse meu desconhecido parceiro de assento perdido o ônibus ou desistido da viagem, resolvido que melhor era seguir em Minas, que o Rio tem andado por demais estranho. E, assim, ganhava eu lugar para me espalhar, feliz, na preparação físico-psicológica que sempre precede essa volta.
Mas qual o quê! Já na terceira cidade (pois, pra quem não está familiarizado, se um ônibus não parar em ao menos 4 cidades no caminho não se pode considerar que saiu de Minas) chegou meu companheiro de banco, acabando com os devaneios de uma quase-cama. Resignada, ajeitei-me no pedaço de ônibus que me cabia e apressei-me a cair nos braços de Morfeu, que minha segunda-feira me esperava, ansiosa, na rodoviária.
No entanto, algo como 40 minutos depois, acordei, dolorida, em uma relação de amor muito séria com a janela, a ela quase me fundindo em paixão. Naquela confusão que antecede e prossegue o sono, indaguei-me que fazia eu da janela tão próxima, vez que tendências suicidas nunca foram meu forte, e se um dia chegarem pretendo ser mais dramática e poética nos métodos. Efetivamente despertando, vi que meu companheiro de viagem, em seu adormecimento, tinha se expandido para bem além dos limites de seu assento, pernas e braços abertos (eu já tinha dito que era um homem?). Provavelmente, então, fora eu recuando ao que ele se aproximava, ambos inconscientes, até o recuo não ser mais possível pelas leis da física, e eu ter acordado.
Acreditei – ah, eu e minha fé na humanidade – que era só delicadamente empurrá-lo de volta que tudo estaria resolvido. Se acordasse ficaria o viajante mesmo sem graça de ter assim incomodado sua desconhecida parceira de estradas. Com cuidado, reestabeleci nossos limites espaciais, afastando sua perna do exíguo espaço que tinha para as minhas, mesmo tendo a atenção de deixar um pedaço da divisória para cada um dos cotovelos. Que todos viajassem e dormissem contentes, que a segunda ali já vinha.
Ajeite-me, tranquila, e rapidamente adormeci, conseguindo mesmo encontrar o rastro de um sonho que antes já começara. Mas mal me aprofundava nestas aventuras oníricas, novamente acordei rendida à janela por um cotovelo militarmente apontado e pernas escancaradas (aliás, eu já tinha dito que era um homem?) do meu folgado meeiro de poltrona.
Dessa vez já irritada, afastei-o com algum alarde. Ah, que visse como andava a incomodar sua pacata vizinha, que tratasse de fechar as pernas e recolher seus cotovelos ao trecho da divisória que legitimamente lhe pertencia, que precisava eu dormir o sono dos justos (embora essa expressão sempre me incomode, que se tomada ao pé da letra seríamos mesmo um mundo de insones).  Pois que quando meu distinto vizinho acorda, aturdido pelos empurrões que nem tão forte foram, ao invés de balbuciar desculpas, ensejar um fechar de pernas, mudar a posição dos braços, ao contrário, olhou-me repressor, como que me pegasse em flagra de pequeno delito, rearrumou o braço de modo a expulsar meu cotovelo de qualquer nesga de espaço e abriu orgulhosamente as pernas (eu já cheguei a comentar que era um homem?) de modo a ficar uma quase no corredor e a outra a me fechar tanto que se não cruzasse eu as minhas não haveria espaço para elas. Mirou-me novamente, como a recomendar “não me venha fazer travessuras de novo” e adormeceu.
Fiquei eu, com um sentimento confuso de revolta e vontade de pedir-lhe infinitas desculpas pelo fato de ter incomodado minimamente seu precioso sono, encolhida no canto da janela, dosando a respiração para que não o tocasse por acaso. As pernas me incomodavam, um pouco inchadas e assim cruzadas. Encarando nossas pernas, as dele tão relaxadamente abertas, as minhas recatada e tensamente fechadas, é que me dei conta do que estava por trás do absurdo da situação. O espaço era dele, as pernas dele precisam estar abertas, a demanda dele define o espaço de cada um. O espaço público é dele, sempre. O meu, se eu o tivesse, seria em outro lugar que não esse, segundo me informam as propagandas, aparentemente continuo sendo rainha da cozinha se me apetecer. Agora viajando de madrugada, cruze as pernas e deixe lugar para quem é de direito. Eu já disse que era um homem?
Não tive dúvida, novamente afastei-lhe a perna e abri com o cotovelo espaço para me apoiar, fazendo questão de que ele acordasse com o movimento para que soubesse que não! eu não compactuava mais com esse diaxo de mentalidade que ensinara ele a colocar-se como quisesse e onde quisesse e a mim a retirar-me, contrair-me. Desencolhi-me com gestos que me pareceram de libertação. É minha metade de banco de ônibus! É minha possibilidade de ser um corpo tão necessitado de espaço quanto outro qualquer. 
Ao sentir seu cotovelo restrito à metade da pequena divisória, insistiu ele novamente contra o meu. Não arredei dali, colocando o cotovelo como ponta de lança de tantas batalhas e reinvenções que tenho me esforçado por travar, desencolhendo os braços com a força de quem anda tentando desencolher as ideias e as perspectivas, a voz.
Senti ele aos poucos tirar o impulso do braço, mas sem com isso recolhê-lo ao tanto que lhe caberia. Seguia encostando no meu, mas sem mais disputar o lugar. Demorei ainda alguns segundos para entender a nova relação travada, quando enfim percebi que seu braço não mais empurrava o meu, mas sim o roçava. Virei-me, estupefata, e vi em seu rosto não mais raiva, mas um olhar levemente sedutor, no tanto que se pode julgar sedutor um ser recém acordado no meio da estrada.
Ah, mas claro. Às 3h da manhã, exausta, no meio da BR, tudo que eu podia pensar era em acordar um desconhecido adormecido para um leve flerte viagem adentro. Sabem como é, não estávamos fazendo nada por ali. Em que espécie de mundo alguém primeiro pensa “Uhm, ela tá usando essa situação pra me dar mole” e não “Opa, estou enfiando o cotovelo nela há duas horas!”? Há de ser uma certeza realmente enorme de que aquele espaço só a ele pertencia e eu mais não podia ser que um braço que o dele procura.
Como momentos de ódio por vezes, e com alguma sorte, nos trazem também uma iluminação, peguei minhas duas bolsas que iam ao pé e criei entre nós uma barricada. Ele suspirou, não compreendendo o que tudo aquilo queria dizer, mas virou de lado e voltou a adormecer, agora à sua metade restrito.
Gastei ainda alguns momentos olhando a estrada antes de poder também dormir.
Invadiram-me dois cansaços infindos. Um, o físico, de saber que já era noite alta, quase Rio, que eu não recuperaria aqueles acordares-dormires e que teria dia longo em semana de provas para enfrentar. Outro, o mental, de tudo ter sempre de ser assim tão batalhado, desse desencolher-se ter que ser sempre contra alguém que cisma adentrar e dominar meu espaço. Pensei em tudo que se fala sobre o feminismo e, em minha pobre metáfora de ônibus de madrugada, quase disse: moço, eu não quero seu espaço, eu não quero seu banco, eu não quero nada além de poder andar desencolhida, de poder movimentar-me livremente na metade que me cabe, de poder, como você, apoiar meu cotovelo. 
Dormi, enfim, o resto do tempo que podia. Cheguei ao Rio mais cansada e torta do que previa.


Mas ainda mais ciente dessa missão diária e constante de me desencolher sempre.  



2 comentários:

  1. Muito bom!Crônica das boas!Bjs
    de Leila Oli

    ResponderExcluir
  2. Elogio vindo assim da Sereia do Rocha não é pra qualquer uma!
    Obrigada, querida Leila!
    Beijo!

    ResponderExcluir